O princípio da razoabilidade

AutorAmérico Plá Rodriguez
Páginas391-413

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203. Caráter de novidade

Na enumeração dos princípios realizada por diversos auto-res não se faz referência a um que, freqüentemente, embora de forma incídental, havia sido utilizado pelajurisprudêncía: o princípio da razoabilidade ou da nacíonalidade576.

Contudo, na prãtica profissional e docente, apreciamos experimentalmente sua utilidade, fecundidade e amplitude.

Por isso, incorporá-Io-emos a nossa exposição, embora estejamos conscientes de que a falta de antecedentes pode tornar particularmente controvertido este capítulo.

204. Denominação

Começaremos por colocar um problema terminológico: princípio de racionalidade ou de razoabilidade?

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Nada melhor que recorrer à definição gramatical.

Racionalidade é a qualidade do racional. E racional é o dotado de razão, ou conforme à razão.

Por sua vez, razoabilidade é a qualidade do razoável. E razoável é definido como o regulado, o justo, o conforme à razão. O próprio dicionário equipara ambas as expressões ao indicar como sinônimo: racional.

De modo que, na verdade, ambas as palavras são equivalentes. Contudo, a palavra racional costuma ser utilizada com maior freqüência para referir-se ao ser dotado de razão e a palavra razoável costuma ser reservada para aludir às atitudes conformes à razão.

Por isso, sem fazer questão fundamental, preferimos a palavra razoabilidade porque se ajusta melhor ao sentido a que nos referimos, ao usar essa expressão. O ser racional pode não atuar razoavelmente se se deixa levar pela paixão ou pelo interesse desmedido. E queremos aludir à suposição - que é uma em que repousa o Direito do Trabalho - de que as partes em matéria trabalhista atuam - ou, melhor dizendo, devem atuar - razoavelmente, quer dizer, conforme à razão.

Recassens Siches577 inclina-se também por chamá-lo de principio de razoabilidade e não de racionalidade por razões mais profundas, derivadas da lógica do razoável. Sem entrar nessas considerações filosóficas, concordamos com o mestre espanhol, no sentido de que o razoável é o bem fundado, pensado satisfatoriamente, de um modo consciente.

Nessa mesma linha de pensamento, Perelman578 afirma: "Todo direito, todo poder legalmente protegido e concedido tem em vista certa finalidade; o titular desse direito tem poder de avaliação quanto à maneira de ser exercido. Mas nenhum direito pode ser exercido de um modo não razoável, pois o que não é razoável não é direito".

205. Noção

Reduzido, pois, à expressão mais simples, podemos dizer que o princípio da razoabilidade consiste na afirmação

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essencial de que o ser humano, em suas relações trabalhistas, procede e deve proceder conforme à razão.

Pinho Pedreira o define como o principio segundo o quaL nas relações de trabalho, as partes, os administradores e juízes devem conduzir-se de uma maneira razoável na solução de problemas ou conflitos delas decorrentes579.

Poderia talvez ser dito que uma afirmação tão elementar não é exclusiva do Direito do Trabalho, mas própria de todos os ramos do direito. Toda a ordem jurídica se estrutura em tomo de critérios de razão e de justiça, que partem da natureza da pessoa humana e buscam concretizar um ideal dejustiça.

A premissa do regime jurídico é que o homem age razoavelmente e não arbitrariamente, já que a arbitrariedade pode ser vista como a contrapartida da razoabilidade. A Suprema Corte argentina tem dito que toda pretensão de uma pessoa - seja física ou jurídica - deve enquadrar-se num marco de razoabili-dade jurídica580.

Mas, além de que os princípios do Direito do Trabalho não têm por que ser necessariamente peculiares a este ramo jurídico581, pertinência de um princípio dessa natureza parece resultar mais necessárias naquelas áreas onde a índole das praxes normativas deixa amplo campo para a decisão individual. Mas essa amplitude da margem de atuação derivada da impossibilidade mesma das previsões não pode confundir-se com a discricionariedade absoluta, nem com a liceidade de qualquer comportamento, por arbitrário que seja.

Trata-se, como se vê, de uma espécie de limite ou freio formal e elástico ao mesmo tempo, aplicável naquelas áreas do comportamento onde a norma não pode prescrever limites muito rígidos, nem em um sentido, nem em outro, e sobretudo onde a norma não pode prever a infinidade de circunstâncias possíveis.

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Couture 581bis escreveu estes parágrafos esclarecedores:

"A idéia da razoabilidade será por muito tempo uma dívida dos direitos de filiação romana para com o direito anglo-saxão.

"O geométrico sistema da lei escrita tem feito, tradicionalmente, que as coisas sejam justas ou injustas, legais ou ilegais, lícitas OU ilícitas; a idéia de que podem ser razoáveis e, portanto, entrar paulatinamente, passo a passo, na liceidade ou na iliceidade é algo que tem levado muito tempo para entrar no direito dos princípios. A lógica jurídica pareceu sempre inimiga irreconciliável dessas fórmulas de estimativa jurídica, segundo as quais um mesmo fato (por exemplo, o imposto) pode ser razoável em certa medida e não em outra. A firmeza, o rigor, a admirável exatidão foL ao longo da história, uma conquista gloriosa. A insegurança, o arbítrio judicial, as soluções aproximativas foram sempre a incerteza, a desordem, a arbitrariedade.

"Mas à medida que a idéia do razoável, tão grata aos tribunais americanos e, especialmente, a sua Suprema Corte, foi entrando em nossa jurisprudência, pôde-se perceber que o caos não vinha com ela e que se fazia penetrar no direito um elemento de equilíbrio que tanto lhe fazia falta".

206. Aplicação no direito constitucional

Tanto não é exclusiva do Direito do Trabalho que há alguns precedentes em outros campos do direito.

Por exemplo, ajurisprudência da Suprema Corte estadunidense tem aplicado esse critério de razoabilidade para a determinação de quais são as limitações ao princípio de igualdade, estabelecido pela Constituição, de que pode dispor o legislador. O reconhecimento da igualdade entre todos os seres humanos não significa a impossibilidade de estabelecer leis aplicáveis a certos grupos de pessoas. Aqui começa a influir o critério da razoabilidade: se se justifica razoavelmente a discriminação, cabe reconhecer como legítima a limitação do principio de igualdade. Porém, se, ao contrário, a linha divisória ou o critério distintivo carece de razoabilidade, a discriminação carece de legitimidade ejustificação.

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Justino Jiménez de Aréchaga, que difundiu entre nós as conclusões da jurisprudência norte-americana neste aspecto, resume-a desta forma: o princípio de igualdade "não se opõe a que se legisle para grupos ou classes de pessoas, com a condição de que todos os compreendidos no grupo sejam igualmente alcançados pela norma e que a determinação da classe seja razoáveL não injusta ou caprichosa ou arbitrária, mas fundada em uma real distinção". Cita a seguir uma série de acórdãos que afirmam: "Embora a legislação de classe seja proibida pela garantia federal da igual-dade perante a lei, ela não proíbe uma razoável classificação das pessoas e das coisas, com finalidades legislativas". E precisa que "a razoabilidade da formação dos grupos ou classes não pode ser julgada independentemente do objetivo mesmo buscado pela lei", ilustrando tal afirmação com o seguinte exemplo: "Seria arbitrário dispor que as mulheres não possam gozar do direito de reunião ou do direito de associação, com a mesma intensidade dos ho-mens, porque, sob o ponto de vista do exercicio do direito de reunião, não se chega a perceber a possibilidade de estabelecer uma diferença razoável entre mulheres e homens. Em troca, seria razoável dispor que, com relação a certos trabalhos industriais, as mulheres não poderão exercer sua liberdade de trabalho, com a mesma intensidade que os homens, porque pode tratar-se de trabalhos de tal natureza que causem um dano fisico mais intenso ã mulher do que ao homem. Assim, pois, é possível legislar 'para mulheres', mas a razoabilidade da constituição das mulheres em grupos ou classes distintas do ponto de vista legislativo resultará da consideração de qual seja a matéria legislada"582

Juan Francisco Linaresexpôs, em uma excelente monografia sobre o tema583, como ajurisprudência norte-americana foi desenvolvendo este principio de razoabilidade, a partir do principio do due process of law, o qual figura como um standardjuridicd584que inicialmente teve

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um alcance puramente processual ou instrumentaL para adquirir em seguida um sentido substantivo, convertendo-se em uma espécie de garantia constitucional inominada.

O devido processo exige que exista certa relação substancial e razoável entre a lei e a segurança, salubridade, moralidade, bemestar, etc., da população. É o que se tem chamado a regra do equilíbrio conveniente (balance of convenience rule) ou da racionali-dade, ou das relações substanciais.

Mas determinar quando esse equilíbrio existe, quando um ato é razoável sob esse aspecto, constitui um problema árduo. Várias são as fórmulas que se têm proposto para conceituar o que é razoável ou conforme a regra do equilíbrio conveniente. Entre outras, podem ser citadas como exemplos as seguintes:

  1. é a comparação e o equilíbrio das vantagens que um ato do Estado traz à comunidade, com os encargos que lhe causa;

  2. é a adequação entre o meio empregado...

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