Privacidade, proteção de dados pessoais e o legítimo interesse como fundamento para o tratamento de dados pessoais em direito comparado

AutorMarcela Joelsons
Páginas13-103
2
PRIVACIDADE, PROTEÇÃO DE DADOS
PESSOAIS E O LEGÍTIMO INTERESSE
COMO FUNDAMENTO PARA O
TRATAMENTO DE DADOS PESSOAIS EM
DIREITO COMPARADO
Como ensina Claudia Lima Marques, as lições do direito comparado devem
ser consideradas para melhorar, aperfeiçoar ou interpretar o direito posto, sendo
reconhecida a importância da comparação jurídica estrangeira há mais de 250 anos
no Brasil, graças à Lei da Boa Razão,1 que foi muito útil para o desenvolvimento e a
modernização do ordenamento jurídico brasileiro.2 Contudo, é importante notar
que o direito comparado não reside na mera comparação de leis, jurisprudência ou
doutrina de forma isolada, pois o direito é um objeto cultural inseparável daquela
realidade que lhe deu origem.3
Por isso, a importância de iniciar o presente estudo, o qual visa comparar o
direito comunitário europeu com o brasileiro, a partir da análise da dimensão social,
histórica e cultural que deu origem ao direito à proteção de dados de pessoais no
ordenamento jurídico do Brasil. Após, será observada a evolução legislativa e os le-
ading cases do judiciário do país, até o atual estágio de desenvolvimento da matéria,
1. Ao que toca a Lei da Boa Razão, Claudia Lima Marques aponta que, em 1769, essa inf‌luente lei introduziu
o princípio de interpretação e de integração das já superadas normas das ordenações e do direito romano
comum a recta ratio, que se encontraria na interpretação atual e na doutrina das nações cristãs civilizadas.
Assim, a Lei da Boa Razão realçou a função modernizadora do direito comparado e atuou principalmente
na teoria das fontes, ajudando a criar um sistema racional de fontes na família lusófona de direitos, que
continua hoje no Brasil com a teoria do professor alemão Erik Jayme do diálogo das fontes (MARQUES,
Claudia Lima. O legado da Lei da Boa Razão e a renovação da Teoria das Fontes: o diálogo das fontes e seu
impacto no Brasil. In: MARQUES, Claudia Lima; CERQUEIRA, Gustavo (Coord.). A função modernizadora
do direito comparado: 250 anos da Lei da Boa Razão. São Paulo: YK Editora, 2020. p. 471-492).
2. MARQUES, Claudia Lima. Cem anos de Código Civil alemão: o BGB de 1896 e o Código Civil brasileiro
de 1916. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 741, p. 11-37, jul. 1997.
3. Segundo Bruno Miragem, “a partir da equivalência funcional, vem a necessidade de análise de uma perspectiva
mais ampla, dos aspectos sociais, históricos e culturais que expliquem a existência do problema e da solução
jurídica encontrada por aquele sistema naquela realidade. Assim, através da análise de semelhanças e diferenças
entre as situações verif‌icadas, será possível chegar-se na comparação entre problemas jurídicos e admitir
a possibilidade de que, para problemas semelhantes, existam soluções diferentes” (MIRAGEM, Bruno. A
contribuição essencial do direito comparado para a formação e o desenvolvimento do direito privado brasileiro.
Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 1000, p. 157-190, fev. 2019).
LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS: FRONTEIRAS DO LEGÍTIMO INTERESSE • Marcela Joelsons
14
com a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados, que trouxe a base legal
do legítimo interesse como hipótese autorizativa para o tratamento de dados pes-
soais. Uma vez analisado o cenário brasileiro, será realizado um estudo em moldes
semelhantes, a partir da origem do direito à proteção de dados na Alemanha, até a
criação do atual modelo legislativo da União Europeia.
2.1 A EVOLUÇÃO DA PROTEÇÃO DE DADOS NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO E AS PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE A BASE
LEGAL DO LEGÍTIMO INTERESSE
A terminologia “proteção de dados pessoais” apenas recentemente foi incor-
porada ao glossário jurídico brasileiro para abarcar situações nas quais o elemento
principal diz respeito ao tratamento de dados pessoais. Todavia, as questões que atu-
almente são associadas à temática da proteção de dados não eram estranhas à práxis
jurídica do país, uma vez que eram, até então, associadas a questões de privacidade.4
Para Danilo Doneda, “a proteção de dados pessoais, em suma, propõe o tema
da privacidade, porém, modif‌ica seus elementos; aprofunda seus postulados e toca
nos pontos centrais dos interesses em questão”.5
Nesta seara, a trajetória percorrida pelo direito à privacidade, que tem como
característica a mutação ao longo do tempo por força da época, da cultura e dos
costumes de uma sociedade, muito interessa, pois ref‌lete os desaf‌ios enfrentados
na tutela desse direito da personalidade diante das consequências da evolução tec-
nológica, sendo este o ponto de partida da pesquisa realizada.
2.1.1 Da privacidade à proteção de dados
Em comparação com outros direitos da personalidade, a privacidade possui
evolução mais recente, tendo como marco inicial de referência jurídica doutrinária o
artigo The Right to Privacy, de Samuel Warren e Louis Brandeis, publicado em 1890
na Harvard Law Review. No trabalho, os autores demonstraram preocupação quanto
à construção de um direito à privacidade a partir de decisões históricas acolhidas
pelos tribunais ingleses e norte-americanos.6
Esse ensaio foi motivado pelo destaque que os jornais de Boston deram à vida
social da esposa de um dos autores. A publicação denunciava, diante das fotograf‌ias
e dos jornais, que os aparatos tecnológicos teriam invadido os sagrados domínios da
4. DONEDA, Danilo. Panorama Histórico da proteção de dados pessoais. In: MENDES, Laura Schertel;
DONEDA, Danilo; SARLET, Ingo Wolfgang; RODRIGUES JR., Otavio Luiz (Coord.). Tratado de Proteção
de Dados Pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 3-20.
5. DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais: elementos da formação da Lei Geral de
Proteção de Dados. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 173.
6. WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis, D. Right to privacy. Harvard Law Review, Cambridge, v. 4, n. 5,
Dec. 1890. Disponível em: www.jstorºrg/stable/1321160. Acesso em: 05 mar. 2021.
15
2 • o LEGÍTIMo INTErESSE CoMo fUNDAMENTo PArA o TrATAMENTo DE DADoS PESSoAIS
vida doméstica e privada. Além disso, buscava identif‌icar na commom law um direito
à privacidade através da evolução jurídica da tutela da pessoa e do seu patrimônio, a
partir da concepção de propriedade, até o reconhecimento da proteção à propriedade
de coisas imateriais ou intangíveis, em precedentes dos tribunais.7
A força desse estudo estava justamente na ideia trazida pelos autores de re-
conhecimento de um direito próprio, que identif‌icaram como privacy, o direito à
privacidade, evidenciado como the right to be alone, ou seja, o direito do indivíduo
de ser deixado só. Dito direito estaria relacionado com a proteção e a inviolabilidade
da personalidade; e, em inovação, os autores rompiam com a tradição que se tinha
até então de associar a proteção da vida privada à propriedade.8
Segundo os doutrinadores:
Algumas coisas, de forma igual a todo homem, têm o direito de ser mantidas distantes da curio-
sidade popular, tratando-se de uma vida pública ou não, enquanto outras são privadas porque a
pessoa de que se está tratando não assumiu uma posição que faz de suas ações assunto legítimo
a uma investigação pública.9
Ademais, buscaram def‌inir os limites do direito à privacidade, apontando que
este não impediria a publicação do que fosse de interesse geral; não vedaria a comu-
nicação de tudo que é privado; não seria exigível reparação se a intromissão fosse
gerada por uma revelação verbal e que não causasse danos; a alegação de veracidade
pelo agressor ou a ausência de dolo não excluiriam a violação do direito, direito, e,
por f‌im, o consentimento do afetado excluiria a violação do direito.10
Outro ponto relevante do estudo de Warren e Brandeis foi a ideia de que não
deveria ser impedida a publicação daquilo que, mesmo sendo de caráter privado,
tenha agregado uma noção de relevância pública específ‌ica. Nesse sentido, pode-
ria ser tornado público não apenas aquilo que diz respeito a coisas comuns, mas
também o que faz parte do reservado de uma pessoa, mas que, por determinadas
circunstâncias fácticas e jurídicas, atinge tal relevância que acaba precisando ser
compartilhado por todos.11
Logo, seria importante a construção das esferas público e privada, para que
fosse possível estabelecer a tutela da privacidade através da identif‌icação de um di-
reito efetivo do indivíduo, sem prejuízo a outras liberdades e posições jurídicas que
concorram com mesma importância no cenário jurídico, e para que os indivíduos
7. WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis, D. Right to privacy. Harvard Law Review, Cambridge, v. 4, n. 5,
Dec. 1890. Disponível em: www.jstorºrg/stable/1321160. Acesso em: 05 mar. 2021.
8. SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2014. p. 136-137.
9. WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis, D. Right to privacy. Harvard Law Review, Cambridge, v. 4, n. 5,
Dec. 1890. Disponível em: www.jstorºrg/stable/1321160. Acesso em: 05 mar. 2021.
10. MENDES, Laura Schertel. Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor: linhas gerais de um novo
direito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 27-28.
11. CACHAPUZ, Maria Cláudia. Intimidade e vida privada no novo código civil brasileiro: uma leitura orientada
no discurso jurídico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2006. p. 97.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT