Reintegrações de posse e despejos na pandemia: a blindagem da propriedade privada perante o direito à moradia

AutorRafael Lessa Vieira de Sá Menezes
Ocupação do AutorDoutor e Mestre em Direito pela USP. Defensor Público no Estado de São Paulo.
Páginas73-99
REINTEGRAÇÕES DE POSSE E DESPEJOS NA
PANDEMIA: A BLINDAGEM DA PROPRIEDADE
PRIVADA PERANTE O DIREITO À MORADIA
Rafael Lessa Vieira de Sá Menezes
Doutor e Mestre em Direito pela USP. Defensor Público no Estado de São Paulo.
Sumário: 1. Introdução – 2. Proteção ao inquilino, ao mutuário e ao possuidor contra remoções
forçadas durante a pandemia – 3. O emaranhado normativo da proteção a pessoas sujeitas à remoção
forçada durante a pandemia no Brasil – 4. O judiciário e a proteção a pessoas sujeitas à remoção
forçada durante a pandemia – 5. CNJ e STF na proteção a pessoas sujeitas à remoção forçada durante
a pandemia – 6. Considerações nais – 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A moradia foi largamente reconhecida como um dos principais elementos de
defesa contra a Covid-19. Durante a pandemia, governos em todo o mundo pediram
ou obrigaram as pessoas a f‌icar em casa como medida não medicamentosa para conter
as infecções, atendendo a recomendações da OMS (Organização Mundial da Saúde).
Uma das principais hashtags usadas no mundo e no Brasil foram #stayathome e #f‌i-
queemcasa. Porém, nem todos tiveram a possibilidade de f‌icar “em casa”.
Primeiro, as pessoas em situação de rua, que por def‌inição não possuem um
teto para morar. Segundo, pode ser problematizada a recomendação para as pessoas
em situação de moradia precária, que não desfrutam de todos os benefícios de uma
moradia digna1. Por f‌im, há aqueles que sofreram remoções forçadas, muitas vezes
por consequência mesmo da crise econômica decorrente da crise sanitária. É o caso
de inquilinos que não puderam pagar os aluguéis devidos e, em razão disso, foram
despejados. Também é o caso de mutuários que se tornaram ou continuaram ina-
dimplentes, sofrendo processos de reintegração de posse, ou de outros possuidores
que sofreram também este tipo de remoção forçada.
Este artigo pretende analisar algumas medidas de proteção e garantia dos di-
reitos de inquilinos, mutuários e possuidores durante a pandemia. Para isso, faz-se
um breve apanhado da proteção contra remoções forçadas no contexto pandêmico,
apontando normas editadas em outros países e no Brasil; analisa qualitativamente
1. No mundo, estima-se que 1,8 bilhões de pessoas não desfrutem de moradia digna. Este conceito, segundo
o Comentário Geral n. 4 sobre o direito a uma habitação condigna, do Comitê dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, tem como elementos básicos de adequabilidade de uma moradia em qualquer contexto:
segurança legal de posse; disponibilidade de serviços, materiais, facilidades e infraestrutura; custo acessível;
habitabilidade; acessibilidade; localização; e adequação cultural.
RAFAEL LESSA VIEIRA DE SÁ MENEZES
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julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo e de outros Tribunais que versam sobre
remoções forçadas, como reintegrações de posse de mutuários ou outros possuido-
res, despejos e imissões na posse durante a pandemia; analisa a decisão do STF que
suspendeu despejos e reintegrações de posse coletivas, bem como as limitações e os
desaf‌ios decorrentes de tal decisão; e tece considerações críticas sobre as possíveis
razões da prevalência do direito de propriedade sobre o direito à moradia no Brasil,
mesmo num período como a pandemia. Defende-se, f‌inalmente, uma abordagem de
garantismo habitacional, pela qual o Estado deve, no tema das remoções forçadas,
privilegiar a função social da posse (aspecto objetivo) e a vulnerabilidade própria de
inquilinos, mutuários e possuidores (aspecto subjetivo).
2. PROTEÇÃO AO INQUILINO, AO MUTUÁRIO E AO POSSUIDOR CONTRA
REMOÇÕES FORÇADAS DURANTE A PANDEMIA
No Brasil, inquilinos residenciais não têm benefícios legais que os protejam dian-
te de situações econômicas ou sanitárias adversas. A lei do inquilinato (Lei 8.245/91)
trata a relação entre inquilinos e proprietários numa perspectiva principalmente
contratual, isto é, concebe as partes numa relação de estrita igualdade, não havendo
proteção especial a vulnerabilidades do locatário. Também outros possuidores de
imóveis que sofrem processos de remoção forçada não têm nenhuma proteção legal
da detenção ou da posse, prevalecendo a tutela da propriedade privada, ainda que
em detrimento da função social. Estes temas ganharam relevo durante a pandemia
global de coronavírus.
Olhando para o direito comparado, em Portugal, ao contrário do Brasil, já exis-
tiam antes da pandemia algumas normas de proteção aos locatários, a começar por
subsídios a aluguéis disponibilizados a jovens e pessoas de baixa renda, chegando a
limitações ao direito de rescisão contratual por parte do locador em certas situações
de saúde do inquilino que afetem sua capacidade de trabalho. Como apontou Olin-
da Garcia, determinadas “condições de saúde do arrendatário, com consequências
específ‌icas ao nível da sua capacidade de trabalho, constituem impedimentos legais
ao exercício do direito de denúncia do locador”2. Estas condições de saúde devem
ser tais que impliquem em “invalidez absoluta, que tenha determinado a passagem
à situação de reforma; incapacidade total para o trabalho (independentemente de
alguma vez ter trabalhado); e def‌iciência a que corresponda incapacidade superior
a dois terços”3, com implicações processuais no diferimento da desocupação do
imóvel em ação de despejo ou com a suspensão da execução do despejo. Este tipo
de proteção, sem igual no Brasil, deveria ser a regra em tempos pandêmicos e além.
Com a eclosão da pandemia do coronavírus, Portugal protegeu legalmente os
locatários e os mutuários, suspendendo os efeitos das denúncias de contratos de ar-
2. M. OLINDA GARCIA. A Importância da saúde do arrendatário na disciplina do arrendamento habitacional.
2002, p. 598.
3. Idem.

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