A responsabilidade civil das pessoas com deficiência e dos curadores após a Lei brasileira de inclusão

AutorRaquel Bellini de Oliveira Salles
Páginas185-200
A RESPONSABILIDADE CIVIL DAS PESSOAS COM
DEFICIÊNCIA E DOS CURADORES APÓS A LEI
BRASILEIRA DE INCLUSÃO
Raquel Bellini de Oliveira Salles*
Sumário: 1. Introdução – 2. A responsabilidade civil da pessoa com deciência em face do novo regime
das incapacidades: entre a autonomia e a vulnerabilidade – 3. O novo perl da curatela com o advento
do estatuto da pessoa com deciência e seu impacto na responsabilidade civil dos curadores – 4.
Considerações conclusivas.
1. INTRODUÇÃO
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) e a Lei
13.146/2015 – Estatuto da Pessoa com Deciência (EPD) ou Lei Brasileira de Inclusão
(LBI), ao inaugurarem uma nova visão sobre a deciência à luz do modelo social, impac-
taram profundamente em diversos institutos do direito privado, entre eles a responsabi-
lidade civil, em especial das pessoas com deciência maiores de idade e dos curadores.
Com efeito, anteriormente muitas das pessoas com deciência psíquica ou inte-
lectual eram tratadas como (absolutamente) incapazes e acabavam sendo enquadradas
no campo de aplicação dos artigos 932, II,1 9332 e 9283 do Código Civil de 2002, que
estabelecem a responsabilidade civil objetiva dos curadores e a responsabilidade sub-
sidiária e equitativa dos incapazes (absoluta ou relativamente). Referidos dispositivos
inovaram em relação ao Código Civil de 1916, que não continha regra correspondente
ao artigo 928 por força do entendimento, até então assentado, de que as pessoas des-
providas de discernimento eram inimputáveis, sendo que os pais, tutores e curadores
deveriam responder subjetivamente, isto é, por culpa in vigilando pelos atos de seus
lhos, pupilos e curatelados. Observa-se que o artigo 928 já suscitava controvérsias na
doutrina e jurisprudência brasileiras antes do EPD, especialmente no tocante à natureza
* A autora registra especiais agradecimentos a Nina Bara Zaghetto, graduada em Direito pela Universidade Federal
de Juiz de Fora e ex-extensionista do Núcleo de Direitos das Pessoas com Deciência, pela pesquisa realizada
em subsídio à redação do presente artigo.
1. Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: I – os pais, pelos lhos menores que estiverem sob
sua autoridade e em sua companhia; II – o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas
mesmas condições (...)”.
2. Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte,
responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos.
3. Art. 928. O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obri-
gação de fazê-lo ou não dispuserem de meios sucientes. Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo,
que deverá ser equitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem.
RAQUEL BELLINI DE OLIVEIRA SALLES
186
da responsabilidade dos sujeitos incapazes e aos conceitos de imputabilidade e culpabi-
lidade,4 assim como a interpretação do artigo 932, I e II, quanto ao sentido da expressão
“sob sua autoridade e em sua companhia”, condições para a responsabilização dos pais,
tutores e curadores.
A entrada em vigor do EPD levantou mais um campo de discussão a desaar a in-
terpretação e aplicação das normas sobreditas. Em face da presunção de capacidade de
exercício das pessoas com deciência psíquica ou intelectual e, ainda, da possibilidade de
restrição/modulação de tal capacidade nos casos excepcionais em que se zer necessária
a curatela para determinados atos,5 indaga-se se referidas pessoas passariam a responder,
em regra, tal e qual as pessoas capazes6 ou se poderiam, em razão da vulnerabilidade
ínsita à deciência, gozar do regime mais benéco da indenização equitativa destinado
aos incapazes. Indaga-se, ainda, como as transformações do instituto da curatela, igual-
mente determinadas pelo EPD, tornando-o medida excepcional, proporcional, plástica
e necessariamente conforme o melhor interesse da pessoa com deciência,7 impactaram
na disciplina da responsabilidade civil dos curadores.
4. O dissenso doutrinário se estabelece em torno da discussão acerca da natureza da responsabilidade civil, se
subjetiva ou objetiva, a partir de três correntes. Na linha de pensamento de CALIXTO, Marcelo Junqueira, A
culpa na responsabilidade civil – estrutura e função. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 49-55, a responsabilidade
civil do incapaz seria objetiva, partindo do argumento de que não se poderia imputar um erro de conduta à
pessoa desprovida de maturidade ou sanidade, ou seja, de condições de discernimento. A imputabilidade estaria
aí atrelada à culpabilidade e à capacidade. Diversamente, MULHOLLAND, Caitlin, A responsabilidade civil da
pessoa com deciência psíquica e/ou intelectual, in: MENEZES, Joyceane Bezerra de (Org.). Direito das pessoas
com deciência psíquica e intelectual nas relações privadas – Convenção sobre os direitos da pessoa com deci-
ência e Lei Brasileira de inclusão, Rio de Janeiro, Processo, 2016, p. 645-648, defende que a responsabilidade do
incapaz é subjetiva, fundada, assim como a responsabilidade subjetiva das pessoas capazes, no ato ilícito por
culpa objetiva, conferindo menor relevância aos aspectos psicológicos dos sujeitos e ao discernimento e maior
ênfase no erro de conduta devido à não observância de certos padrões de comportamento, standards cada vez
mais concretos, fragmentados e especializados, em lugar da comum abstração do padrão médio de diligência do
bonus pater familias ou reasonable man. Tem-se ainda uma terceira corrente, representada por BRAGA NETTO,
Felipe, FARIAS, Cristiano Chaves de, e ROSENVALD, Nelson, Novo tratado de responsabilidade civil, 4. ed. São
Paulo: Saraiva, 2019, p. 730, que sustenta que a responsabilidade do incapaz seria uma espécie de responsabi-
lidade patrimonial, porém subsidiária e mitigada, haja vista que “os menores não cometem ilícitos civis, em
virtude de sua inimputabilidade. Podem, contudo, à luz da ordem jurídica vigente, ser civilmente responsáveis
por determinados danos. Cabe sempre lembrar que ilicitude civil não se confunde com responsabilidade civil.
A incapacidade civil produzirá duas ordens de efeito: (a) atrairá a responsabilidade objetiva dos pais, tutores ou
curadores (CC, art. 932, I e II); (b) evidenciará sua própria responsabilidade patrimonial, porém subsidiária e
mitigada (CC, art. 928, parágrafo único)”.
5. Hipótese em que o curatelado é considerado, apenas para a prática de tais atos, como relativamente incapaz
devido ao disposto nos artigos e 1.767, I, do Código Civil, respectivamente do seguinte teor: “Art. 4º. São
incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: (...) III – aqueles que, por causa transitória ou
permanente, não puderem exprimir sua vontade;” e “Art. 1.767. Estão sujeitos a curatela: I – aqueles que, por
causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade;”.
6. Se houver curatela, a responsabilidade “tal e qual as pessoas capazes” é cogitada apenas em relação aos atos não
inseridos no âmbito de atuação do curador.
7. Dispõe a respeito o EPD: “Art. 84. A pessoa com deciência tem assegurado o direito ao exercício de sua capa-
cidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas. (...) § 3º A denição de curatela de pessoa com
deciência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada
caso, e durará o menor tempo possível.” E ainda: “Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados
aos direitos de natureza patrimonial e negocial. (...) § 2º A curatela constitui medida extraordinária, devendo
constar da sentença as razões e motivações de sua denição, preservados os interesses do curatelado”.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT