A sucessão testamentária e suas principais polêmicas diante das previsões do Código Civil

AutorAna Luiza Maia Nevares
Páginas597-613
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A SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA
E SUAS PRINCIPAIS POLÊMICAS DIANTE
DAS PREVISÕES DO CÓDIGO CIVIL
Ana Luiza Maia Nevares
Doutora e Mestre em Direito Civil pela UERJ. Professora de Direito Civil da PUC-Rio.
Vice-Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da Família do IBDFAM. Di-
retora Acadêmica do IBDFAM-RJ. Membro do IBDCivil e do IAB. Advogada.
Sumário: 1. A sucessão testamentária no Brasil – 2. As principais inovações do Código Civil de 2002
na sucessão testamentária; 2.1 A simplicação das formalidades testamentárias; 2.2 O convalesci-
mento do testamento nulo; 2.3 A exigência de justa causa para gravar os bens da legítima com as
cláusulas restritivas da propriedade; 2.4 A modicação da disciplina do deicomisso – 3. Conclusão.
1. A SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA NO BRASIL
No Brasil, o direito de herança está previsto como uma das garantias funda-
mentais do cidadão brasileiro, consoante inciso XXX do art. 5º da Constituição
da República. Por força da referida disposição legal, o patrimônio de uma pessoa
falecida segue uma sucessão hereditária privada, em corolário à garantia da proprie-
dade privada funcionalizada (CR/88, art. 5º, incisos XXII e XXIII), não podendo ser
apropriado pelo Estado.
O legislador prevê aos indivíduos instrumento através do qual podem estabelecer
o destino de seus bens após sua morte. Trata-se do testamento.
O Código Civil de 1916 def‌inia o testamento como o ato revogável pelo qual
alguém, de conformidade com a lei, dispõe no todo ou em parte, de seu patrimônio,
para depois da sua morte (CC16, art. 1.626). Tal conceito era considerado muito
restrito, já que se limitava ao aspecto patrimonial do ato de última vontade, quando
o testamento pode conter outras disposições de cunho não patrimonial, como o
reconhecimento de f‌ilhos, a nomeação de tutor, o destino ao corpo do falecido ou
uma disposição que simplesmente revogue o testamento anterior.
Na esteira da aludida crítica, o Código Civil não fornece conceito de testamento,
estabelecendo apenas a sua função no ordenamento jurídico, qual seja, ato através
do qual são instituídas disposições de última vontade, quer de cunho patrimonial,
quer de cunho não patrimonial. Realmente, o testamento serve a diversos objetivos
do testador, de natureza patrimonial ou não, tendo como elemento comum de suas
disposições a ef‌icácia post mortem.
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Lavrar um testamento é uma faculdade. Em sua ausência, convocam-se os sucesso-
res conforme estabelecido pela lei. Como prevê o artigo 1.786 do Código Civil, a sucessão
hereditária dá-se por lei ou por disposição de última vontade, sendo no primeiro caso
conforme a ordem de vocação hereditária (CC, art. 1.829) e no segundo conforme a
manifestação de vontade do testador expressa a partir das disposições testamentárias.
Cabe ao legislador designar os herdeiros legais de uma pessoa e, para tanto,
inspira-se nas relações mais próximas e de interdependência entre os indivíduos, a
saber, as relações familiares. De fato, é a família que fornece ao legislador os critérios
para o estabelecimento daqueles que devem ser chamados a suceder.
Na regulamentação da sucessão hereditária, o legislador depara-se com dois
grandes centros de interesse, que são a proteção da família, base da sociedade, que
tem especial proteção do Estado, e a autonomia do titular dos bens de dispor como
bem lhe aprouver sobre o seu destino post mortem. A conciliação desses dois centros
de interesses é encontrada na legítima dos herdeiros necessários, na medida em que o
legislador prevê uma proteção patrimonial cogente para os descendentes, ascenden-
tes, cônjuge e companheiro, conforme a ordem prevista no artigo 1.829 do Código
Civil, f‌ixada em 50% (cinquenta por cento) dos bens da herança (CC, art. 1.789).
O Direito Sucessório, portanto, gravita em torno do princípio da intangibilidade
da legítima1, sendo este o principal limite da sucessão testamentária, já que a reserva
dos herdeiros necessários não pode ser reduzida em quantidade e substância por
força das disposições testamentárias.
No regime do Código Civil, as disposições de bens para depois da morte só po-
dem ocorrer pelo testamento ou codicilo. Isso porque, o Código Civil, ao contrário
de outros ordenamentos jurídicos, não permite que seja objeto de contrato herança
de pessoa viva, vedando de uma forma genérica os pactos sucessórios (CC, art. 426),
ainda que existam previsões legais que os admitam (CC, art. 1.028). Além disso, as
doações mortis causa, admitidas no direito anterior em uma única hipótese, qual seja,
quando feitas nos contratos antenupciais em benefício do cônjuge e de sua prole
(CC16, art. 314), não foram previstas na vigente codif‌icação.
Em seu artigo 1.858, o Código Civil estabeleceu alguns caracteres do ato testa-
mentário. Trata-se de ato personalíssimo, pois só pode emanar da vontade individual
e única do testador, que deve ser declarada por ele próprio, não sendo admitido
que a última vontade seja manifestada através de representantes, convencionais ou
legais. Além disso, determina, ainda, o citado art. 1.858 que o testamento pode ser
mudado a qualquer tempo. Com efeito, o ato testamentário contém disposições de
última vontade, só produzindo efeitos após a morte do testador, sendo certo que
não importa o tempo decorrido entre o testamento e o óbito do disponente. Até tal
1. Nesta sede, não serão abordadas as polêmicas sobre a legítima. Sobre o tema, seja consentido remeter o
leitor para NEVARES, Ana Luiza Maia. A crise da legítima no Direito Brasileiro. In: TEIXEIRA, Ana Carolina
Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima (Coord.). Contratos, família e sucessões. 2. ed. Indaiatuba: Foco,
2021. p. 331-345.
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