A voz dos oprimidos
Autor | Carlos Frederico Santos |
Ocupação do Autor | É Subprocurador Geral da República, com atuação na área criminal no Superior Tribunal de Justiça e Conselheiro do Conselho Superior do Ministério Público Federal |
Páginas | 69-105 |
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A VOZ DOS OPRIMIDOS
O genocídio é uma prática antiga que ganhou nome somente
no Século XX, mas que há muito vem sendo utilizada para sub-
jugar grupos, comunidades e povos, deixando traços em diversos
eventos históricos.
As vítimas genocidas, quando sobrevivem, geralmente são su-
focadas e não conseguem exprimir a dor e a violação da dignidade
que as invadem, ou tampouco recebem o auxílio necessário, no
momento oportuno, a evitar catástrofes que levam à dizimação,
em verdadeiras ofensas às aspirações do direito de existência da
vida em grupo.
As duas fases do genocídio descritas por Lemkin, referentes à
destruição do padrão nacional do grupo oprimido e à imposição
do padrão nacional do opressor1, encaixam-se como uma luva em
um dos maiores genocídios ocorridos no mundo, o genocídio dos
nativos das Índias Ocidentais, cujas etnias foram massacradas,
quando não dizimadas.
A referidos nativos sequer se oportunizou uma posição dia-
lógica, uma vez que foram analisados de acordo com o padrão
europeu, levando a nudez que lhes era característica a reetir se
estavam mais próximos dos homens ou dos animais, não sendo
percebidos, assim, como o outro.2
1 LEMKIN, 2009, p. 154.
2 TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. 2. Ed.
São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 15.
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A invisibilidade, portanto, foi um fator incontornável na vida
dos nativos das Índias Ocidentais, pois, embora senhores de suas
terras, que habitavam há mais de 20.000 anos, e de viverem em
sociedades variadas, cada uma com sua própria língua e cultura,
desfrutando de próspera rede de comércio e intrincado sistema
religioso,3 acabaram por ser completamente desconsiderados, se
não coisicados.
Isso cou claro na Bula Inter Coetera, de 14934, emitida pelo
Papa Alexandre VI, através da qual doou as Índias Ocidentais aos
3 MINTZ, Steven. Native americam voices. New York: Brandywine press,
2000, p. 1 e 5.
4 FERREIRA, Waldemar. História do Direito Brasileiro: as capitanias colo-
niais de juro e herdade. V. I, São Paulo: Saraiva, 1962, p. 275-280.
“[...] E a m de ajudar-vos pela largueza apostólica a tomar com maior âni-
mo o carrego de tamanha emprêsa sobre vossos ombros, de nossa própria,
livre e espontânea vontade, e sem respeito a nenhuma petição e insinuação,
que por vós ou por outrem nos fôsse presente, e movidos sòmente de nossa
liberdade e municência, nos praz de vos fazer mercê e doação, de agora
para todo sempre, de todas as ilhas e terras rmes já achadas e que se hou-
verem de achar, descobertas e por descobrir, para as bandas do Ocidente
e Meio-dia, tirando-se uma linha reta do pólo ártico, quem ou não essa
ilhas e terras rmes para as partes da Índia, ou outro qualquer quarteirão
do globo, sendo nossa vontade todavia que essa linha corra em distância
de cém léguas para o Ocidente e Meio-dia das ilhas chamadas dos Açores e
Cabo Verde.
Assim que, pela autoridade de Deus Todo-Poderoso, que nos foi dada na
pessoa do apóstolo S. Pedro, e da qual gozamos, como Vigário de Cristo
na terra, vos fazemos doação das ditas ilhas e terras rmes, achadas e por
achar, descobertas e por descobrir, com todos os seus senhorios, cidades,
vilas, castelos, aldeias, povos, lugares, direitos, jurisdições e todos os mais
pertences e dependências que tocar passam, uma vez que já não estivessem
na posse de algum outro rei ou príncipe cristão até o dia do derradeiro
natal, em que começou o presente ano de 1493. O qual dom nos praz tres-
passar nas pessoas de vossos herdeiros e sucessores, reis de Castela e de
Leão, e os havemos e constituímos como senhores absolutos dêle, como
mero e misto império, pleno poder, autoridade e jurisdição, salvo todavia
os direitos de qualquer príncipe cristão, atual possessor, até o sobredito dia
do nascimento de Nosso Senhor.
[...] E ninguém seja ousado a infringir e quebrantar o que está determinado
por este nosso mandamento, exortação, requisição, doação, concessão, as-
sinação, constituição, decreto, proibição e absoluta vontade.
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reis católicos, Fernão de Aragão e Isabel de Castela, e tudo o que
nelas estivessem, como as ilhas e as terras rmes, achadas ou por
achar, descobertas ou por descobrir, com todos os seus senhorios,
cidades, vilas, castelos, aldeias, povos, lugares, direitos, jurisdições
e todos os pertences que ali se encontravam.
Os índios sequer imaginaram que, a partir daquele momento,
a liberdade e dignidade que desfrutavam não mais existiam, pois
se tornaram, junto com suas terras e riquezas, objeto de disputa
entre Espanha e Portugal, que foi solucionada em 1494 através do
Tratado de Tordesilhas, consagrado pelo Papa Júlio II, em 1506,
por meio da bula Ea, Quae pro bono pacis.5
A partir da emissão dessas bulas papais, as Índias Ocidentais
passaram a pertencer aos Ibéricos, que, a princípio, mantiveram
contatos amigáveis com os nativos na busca de uma aproximação
sem desgastes, objetivando conhecer o ambiente e ganhar a con-
ança dos índios, utilizando a troca de produtos como meio ecaz
de comunicação.
Bartholomé de Las Casas descreveu bem, à época, a evolução
desse contato, em memoráveis obras, retratando o processo de sua
evolução e agravamento, com o paulatino desprezo pela vida e li-
berdade humanas.
Embora tivesse grande estima por Cristóvão Colombo, e te-
nha defendido os feitos do descobrimento das Índias, com a im-
putação de pretender Américo Vespúcio usurpar a glória do des-
cobrimento da “Terra Firme”6, detalhou parte da última viagem
realizada pelo genovês de forma a demonstrar a gradual e progres-
siva ação que revelaria o modus operandi espanhol na conquista
das Índias Ocidentais.
[...] Dada em S. Pedro, de Roma, no Ano da Incarnação de Nosso Senhor,
de 1493, aos quatro das nonas de maio, e primeiro de nosso ponticado.”
5 BULA Ea, quae pro bono pacis. Disponível em: <http://www.biblioteca.tv/
artman2/publish/1506_261/Bula_Ea_quae_pro_bono_del_Papa_Julio_II_
que_conr_1115.shtml>. Acesso em: 05 out. 2016.
6 LAS CASAS, Bartolomé de. História de las índias. Vol. 2, Caracas, VE: Aya-
cucho, 1956, p .11.
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