O advogado no contexto interpessoal

AutorJosé Osmir Fiorelli/Marcos Julio Olivé Malhadas Junior/Maria Rosa Fiorelli
Páginas196-226

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Se não sais de ti não chegas a saber quem és

Hás de devolver o viço à planta dos pés

Hás de correr o risco abandonar o cais

Içar as velas e apenas ir Pois o pior naufrágio é não partir.

Rosy Greca — letra da trilha sonora da peça teatral

O conto da ilha desconhecida.

Relacionamentos interpessoais são constantes na prática da advocacia: clientes, testemunhas, colegas, juízes, promotores veem-se em constante interação (nem sempre prazerosa, diga-se de passagem). Imprimir-lhes eficácia, portanto, é de interesse imediato do advogado, por motivos econômicos (aumento de produtividade), psicológicos (preservação do bem-estar) e sociais.

Dois elementos, interdependentes, são basilares para o relacionamento profissional saudável e produtivo: o autoconhecimento e a percepção do outro — aquele com quem se interage.

O autoconhecimento possibilita (e estimula) o desenvolvimento da percepção do outro; percebendo o outro, a pessoa adquire condições de se comparar e, assim, se conhecer melhor. A pessoa que se conhece encontra motivação para arriscar-se a conhecer ainda mais seus interlocutores, porque não se deixa tolher por mecanismos de defesa, preconceitos e crenças inadequados. Dessa maneira, estabelece-se um ciclo de desenvolvimento contínuo do profissional, cujo resultado é a autorrealização, o bem-estar, o equilíbrio consigo mesmo e, em consequência, o sucesso financeiro e profissional.

Isso não significa que a profissão será sempre um “mar de rosas”: conflitos com os interlocutores estarão sempre presentes; entretanto, eles serão enfrentados com a serenidade possível e a certeza de que se adotam os melhores procedimentos que se encontram ao alcance.

O autoconhecimento, ainda que desafiador, é o bilhete da viagem para a “ilha desconhecida”, onde paisagens inexploradas demonstrarão que valeu a pena um grande esforço para desenvolvê-lo continuamente. Este capítulo inicia-se com sugestões de habilidades pessoais e interpessoais que sempre podem ser aperfeiçoadas. Inclui visões abrangentes de liderança e de trabalho em equipe, necessárias para a compreensão de questões ligadas à atuação em conjunto com outras pessoas, que tanto podem ser os colegas de escritório como os próprios clientes, testemunhas e outros envolvidos em processos.

7.1. Habilidades pessoais e interpessoais
7.1.1. Autoconhecimento

O autoconhecimento completa o conjunto de habilidades do profissional. Sem ele, o indivíduo não poderá ter certeza de que não contamina, com seus conteúdos

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psíquicos, os comportamentos que manifesta e a interpretação dos fenômenos que vivencia. Ele propicia melhor aceitação de críticas, à medida que o indivíduo aprende a reconhecer a influência dos próprios conteúdos nas observações trazidas por outros profissionais, a respeito de seus comportamentos; favorece a autoavaliação e a disposição para estabelecer metas para o autodesenvolvimento, estabelecendo, assim, um circuito de melhoria contínua.

Compreender, em profundidade, a própria estrutura de crenças, suas consequências na interpretação dos estímulos que recebe, o uso que faz dos seus mecanismos de defesa, o efeito dos condicionamentos adquiridos e os esquemas de pensamento que utiliza, buscando identificá-los e administrá-los, proporciona ao advogado um poderoso instrumento de aumento de eficiência e eficácia.

O autoconhecimento revela potenciais ocultos, virtudes, defeitos e características de personalidade merecedoras de aperfeiçoamento, atenuação ou controle, abrindo novas possibilidades de desempenho para o indivíduo. Ele amplia a compreensão das forças que atuam no íntimo de cada um, capazes de influenciar nos relacionamentos, sem que a pessoa se dê conta de que isso acontece.

Favaretto pretendia dedicar-se ao Direito de Família e, desde cedo, deparou-se com uma substancial dificuldade: não conseguia suportar pessoas, notadamente do sexo feminino, que fossem pouco objetivas, hipervalorizadoras de pequenos eventos, que chegassem costumeiramente atrasadas aos encontros marcados com ele, descuidando de papéis e outros detalhes. Em especial, Favaretto encontrava grande dificuldade para relacionar-se com “histriônicas” (ver características de personalidade). No afã de construir seu espaço profissional, demorou um longo tempo para dar-se conta de que ele, de fato, não sabia se relacionar convenientemente com esse tipo de cliente, com prejuízos para ambos.

O caminho para o autoconhecimento, ensina Rosy Greca na epígrafe, exige o sair de si para poder observar-se. O olho, porém, não olha dentro de si. Para se conhecer, a pessoa há de tomar por empréstimos ouvidos e olhos dos outros, as lanternas e radares que rastrearão e iluminarão as sendas dos ínvios labirintos dos pensamentos, para os quais a periscopia do próprio olhar — o máximo que o espelho revela — não basta.

Por meio do outro, a pessoa se encontra; por seus anseios, mágoas, prazeres, realizações e desejos compreende a extensão e o teor desses sentimentos nela mesma. Não há o conhecimento absoluto; somente a relatividade cria as referências para a autoavaliação: branco, negro, alto, baixo, gordo, magro, ansioso, calmo, inibido, extrovertido são termos meramente comparativos em relação a padrões de referência estabelecidos por observação.

Realizar a navegação em direção a essa tão próxima quanto distante criatura — o outro —, desafiando a indiferença, a superficialidade e o egoísmo que a cultura contemporânea prega impiedosamente, por meio de uma complexa mídia do possuir que traz a ilusão da autossuficiência, requer atitudes e habilidades pessoais que podem ser desenvolvidas intensa e extensamente.

A emoção constitui a matéria-prima essencial para este progresso em direção ao próprio ser. Ela põe o barco em movimento rumo à ilha desconhecida. Manobrá-lo,

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entretanto, exige sensibilidade para manter-se atento na busca do autoconhecimento, para a nave não ficar à deriva, derrotada pela inércia ou naufragar pelo peso dos desejos.

7.1.2. Habilidades pessoais e interpessoais

Habilidades não se confundem com conhecimentos. Uma habilidade é um conhecimento colocado em prática. Ela manifesta-se em comportamentos e estes fazem a diferença. O conhecimento somente frutifica quando se manifesta.

Algumas habilidades, úteis para advogados e, também, para seus colaboradores, encontram-se aqui detalhadas; a partir delas, por generalização e analogias, muitas outras poderão ser identificadas, compreendidas e praticadas.

• Habilidade de observar

A habilidade de bem observar constitui a base de todo o sucesso no relacionamento interpessoal. Ela compreende:

— Perceber as mensagens não verbais contidas nos comportamentos da(s) pessoa(s) (MIRANDA; MIRANDA, 1993, p. 71). Essas mensagens transmitem informações a respeito de características de personalidade do interlocutor, de seus mecanismos de defesa, preconceitos e esquemas de pensamento, nem sempre perceptíveis na fala.

Por exemplo, há indivíduos de elevada timidez que falam fluentemente, como estratégia (mecanismo de defesa) para não serem interrogados.

O corpo, entretanto, não mente e o observador encontrará nos gestos os sinais que a fala procura ocultar.

— Identificar comportamentos dos clientes, favoráveis e não favoráveis aos objetivos pretendidos, a forma como eles acontecem e os fenômenos que os desencadeiam. A pessoa que se apresenta mal ou inadequadamente vestida deve ser orientada para causar boa impressão; detalhes de joias, penteado, maquiagem devem ser cuidados, evitando que a imagem da pessoa entre em contradição com suas demandas. Juízes são pessoas e, portanto, julgam de acordo com o que leem, veem e ouvem.

O advogado que não identifica a propensão de um cliente a uma explosão repen-tina de cólera pode estar comprometendo o resultado da ação. Evitar o desencadeante torna-se crucial.

— Discriminar detalhes dos comportamentos que passam despercebidos pelas pessoas que os emitem, desde aspectos relacionados à postura física até inflexões de voz. Há pessoas que transmitem arrogância, acreditando causar impacto favorável, quando seria conveniente demonstrar humildade; uma mulher apresentando-se com roupas ousadas não constitui um argumento favorável em uma ação de assédio sexual.

O observador atento identifica detalhes reveladores de características de personalidade potencialmente capazes de influenciar a percepção dos demais a respeito do cliente ou de seu oponente.

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Gabriela era uma jovem secretária com transtorno obsessivo-compulsivo leve. Quando ansiosa, passava a piscar repetidamente — um prenúncio de que algum pensamento obsessivo começava a tomar conta de sua mente. Esse comportamento não passou despercebido da Dra. Márcia, a atenta advogada por ela contratada para tratar de uma ação de assédio sexual movida por Gabriela contra seu ex-empregador. O que poderia ser percebido por outras pessoas como um cacoete irritante, para Márcia era um sinal de que a sessão deveria ser interrompida para acalmar a cliente e, assim, retomarem os trabalhos com eficiência e bem-estar. Um simples exercício de relaxamento, que toma não mais do que três minutos, era suficiente para colocar Gabriela, novamente, em sintonia com a doutora.

O bom observador, da mesma forma que o navegador experiente:

— é paciente; sabe que a percepção aumenta com a persistência; que as espigas do trigo são iguais apenas para o olho desacostumado; que as ondas escondem os rochedos e estes fazem a geografia...

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