As funções mentais superiores

AutorJosé Osmir Fiorelli/Marcos Julio Olivé Malhadas Junior/Maria Rosa Fiorelli
Páginas106-137

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Este capítulo tem por objetivo proporcionar ao leitor uma visão ampla e sistêmica das funções mentais superiores, por meio das quais se realizam as principais atividades mentais, cujo conhecimento interessa para a compreensão do comportamento humano.

Por intermédio das funções mentais superiores os indivíduos desenvolvem imagens mentais de si mesmos e do mundo que os rodeia, interpretam os estímulos que recebem, elaboram a realidade psíquica e emitem comportamentos.

As principais funções mentais superiores são: atenção, sensação, percepção, memória, pensamento, linguagem, emoção e orientação. A orientação não será abor-dada neste texto, porque as observações a respeito dela têm cunho preponderantemente fisiológico.

O leitor observará que se dá particular atenção à percepção, porque por meio dela o indivíduo interpreta os estímulos provenientes do ambiente que o cerca. Deve-se, entretanto, destacar que a emoção constitui uma função mental superior que sempre influencia as demais, a ponto de ser determinante no modo de interpretar os estímulos e reagir a eles, conforme se verá adiante.

4.1. Sensação

Segundo Braghirolli et al. (1998, p. 73), “as informações relativas aos fenômenos do meio externo e ao estado do organismo são processadas em dois níveis: os níveis da sensação e da percepção”. Sem esse mecanismo, o cérebro se perderia em um oceano de informações, em parte contraditórias (por exemplo, o indivíduo pode sentir fome enquanto digita um documento: ele continua o trabalho ou procura alimento?).

“Sensação” e “percepção” constituem um processo contínuo, desde a recepção do estímulo até a interpretação da informação pelo cérebro, valendo-se de conteúdos nele armazenados (figura 4.1).

Figura 4.1. Da sensação à percepção — um processo contínuo

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“Os processos de sensação e percepção são normalmente difíceis de separar”, explica Weiten (op. cit., p. 93), “porque as pessoas automaticamente começam a organizar a recepção de estimulação sensorial no momento em que ela chega”. Efetivamente, todos os fenômenos mentais superiores encontram-se interligados e ocorrem simultaneamente. Não há percepção sem atenção e memória para recuperar informações anteriores e compará-las com as novas. A comparação requer um pensamento que a realize; este depende de uma linguagem. A emoção determina a natureza das interpretações e assim por diante.

Por razões didáticas, estudam-se as funções mentais superiores separadamente, como se cada uma delas pudesse se constituir em entidade única, da mesma maneira que se faz no estudo da fisiologia.

Sensação é a operação responsável pela comunicação entre o mundo interno do indivíduo e o mundo externo, por meio dos órgãos dos sentidos. Sem ela, nenhuma atividade (física ou mental) seria possível. Essa comunicação pode ser prejudicada por fatores físicos (traumas, sequelas, patologias) e emocionais (o indivíduo dominado por uma intensa raiva concentra todas as energias e sentidos em um único alvo: o oponente).

Por intermédio da sensação as informações relativas a fenômenos do mundo exterior ou ao estado do organismo chegam ao cérebro e constituem a “matéria-prima” a partir da qual será construída a compreensão do meio ambiente e do próprio corpo. Duas conclusões são óbvias:

  1. O sucesso de qualquer comunicação depende de como o indivíduo toma contato com ela. Em primeiro lugar, a comunicação deve atuar sobre os mecanismos da sensação. Daí a vantagem de se combinar, por exemplo, estímulos verbais com a comunicação por escrito, para aumentar a possibilidade de contato. Há pessoas que “não ouvem”, mas conseguem ler com eficácia; outras necessitam ouvir porque possuem dificuldade para a leitura; há aquelas que necessitam da presença da outra parte para estabelecer a comunicação.

  2. Não haverá comunicação sem a formação, em um primeiro momento, de imagem mental correspondente à sensação (a interpretação dessa imagem mental, em seguida, constitui a percepção). O conteúdo não garante que a comunicação aconteça. Na maior parte das situações, a forma possui tanta importância quanto o conteúdo. Isso se aplica às empresas, famílias, sociedades etc. e explica porque a simples visão de um desafeto desencadeia inúmeras e poderosas emoções: antes que ele fale, por exemplo, o cérebro já ativou a memória e o ódio aflora; da mesma maneira, a figura da pessoa amada desencadeia emoções positivas.

Lucinha e Norival compareceram à audiência em que se buscou a reconciliação do casal. Entraram sem se olhar. Durante o encontro, permaneceram de cabeça baixa ou olhando para os respectivos advogados; ficou bastante claro que, bastava a um dos cônjuges ver o outro, para que isso lhe despertasse fortíssimos sentimentos, capazes de impedir qualquer pensamento construtivo. Dessa maneira, ficou evidente a presença de um obstáculo intransponível à celebração de acordos mutuamente vantajosos. A imagem do outro ocupava todo o pensamento de cada um deles de modo tão negativo que não sobrava espaço para uma reflexão.


c) Sensações são processos ativos, assinala Luria, em que o indivíduo participa.

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A simples produção de estímulos pode revelar-se insuficiente à geração da sensação, caso o indivíduo não corresponda ativamente. Não basta ao advogado promover um encontro entre as partes, se uma ou ambas não se empenham na busca de uma solução. Fenômenos de natureza psicológica estão por trás de posturas aparentemente sem lógica, do tipo atrasar-se, não prestar atenção, delegar a decisão ao advogado ou a um outro preposto, agredir desnecessariamente, ignorar os argumentos do outro lado etc.

O leitor encontra um estudo detalhado da sensação em Fiorelli (2004). As seguintes características da sensação têm interesse direto para o profissional de Direito, porque estão sempre presentes nas mais diversas situações:

• Algumas pessoas possuem extraordinária capacidade de experimentar sensações decorrentes de mínimas transformações fisiológicas em seus interlocutores. Tem-se a impressão de que elas “adivinham emoções”, detectando, por exemplo, que seu interlocutor está mentindo ou irá fazê-lo. Em geral, mal tomam conhecimento dessa habilidade. O contato frequente com os mais variados tipos de pessoas contribui para desenvolver e aperfeiçoar essa capacidade, reconhecida em delegados de polícia, investigadores, juízes e advogados experientes.

• No calor do conflito, em que fortes emoções encontram-se presentes, os participantes tendem a se tornar mais sensíveis a estímulos como luz, calor, ruído, movimentos dos opositores etc. De modo similar, pode ocorrer redução seletiva da sensibilidade, dependendo de como um estímulo confirme ou não determinado sentimento (uma forma de o psiquismo proteger-se contra algo que o agride profundamente). A organização do ambiente deve levar isso em consideração, para assegurar boas condições operacionais.

Um exemplo é a escolha da cor para o ambiente. Cores afetam o estado emocional, contribuindo para inibir, acentuar ou manter determinadas emoções. Elas podem despertar a atenção, relaxar, aumentar ou reduzir o nível de ansiedade, evocar o passado etc.

A cor afeta a fixação de imagens, a noção de distância, a sensação de dor, além de influir no estado emocional e em vários transtornos de natureza psíquica, podendo acentuar ou reduzir suas manifestações. A correta escolha das cores no ambiente contribui para a eficácia geral e, até mesmo, para o relacionamento entre os litigantes. Considerando a contribuição para a eficácia dos trabalhos, seria recomendável que os diferentes ambientes (salas em que se realizam audiências do poder judiciário, câmaras de mediação e arbitragem) fossem pintados tendo em vista o objetivo de desarmar e relaxar as pessoas. Naturalmente, a escolha de padrões e cores deve respeitar características locais e regionais, porque os efeitos obedecem a influências socioculturais.

• A sensação possui um limiar inferior, isto é, um nível mínimo de intensidade abaixo do qual o estímulo não é reconhecível pelo indivíduo. O limiar inferior varia de indivíduo para indivíduo e depende de vários fatores, tais como a habitualidade, o fundo de estímulos inicialmente existentes, o estado emocional etc. Uma informação pode ser ignorada porque o estímulo (visual, auditivo etc.) foi insuficiente para produzir a sensação.

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• Existe um limiar superior, acima do qual o estímulo danifica os mecanismos de recepção (eventualmente, provocando dor) e/ou atinge um “patamar de saturação”, de tal ordem que suas variações deixam de ser detectadas pelos receptores. Informações em excesso deixam de ser registradas porque o cérebro descarta uma parte delas, pois não consegue administrar a totalidade.

• As sensações, conforme enfatizado, recebem influência do estado emocional. Ansiedade e depressão, por exemplo, provocam profundas alterações no meta-bolismo. Os limiares também são extremamente afetados. Quando se tem ódio de alguém, qualquer som que essa pessoa produza é imediatamente ouvido; uma risada soa como uma provocação, podendo levar à agressão ou ao homicídio, ainda mais quando o oponente encontra-se sob o efeito de droga, como o álcool.

• Existem mecanismos de bloqueio da sensação: ultrapassado um nível máximo de estímulo, o organismo “desliga” — o que não significa que o estímulo, de alguma forma, não o afete. O desmaio pode ser uma reação de fuga para poupar o cérebro do enfrentamento de uma situação altamente desagradável (capaz de provocar dor...

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