Psicopatologias

AutorJosé Osmir Fiorelli/Marcos Julio Olivé Malhadas Junior/Maria Rosa Fiorelli
Páginas227-250

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Neste capítulo, abordam-se o conceito de transtorno mental e as psicopatologias mais presentes no cotidiano da prática do Direito; apresenta-se uma descrição geral dos quadros que as caracterizam, obviamente sem a preocupação de diagnóstico. Basicamente, todos os conceitos fundamentaram-se em duas fontes: a Classificação Internacional de Doenças (CID-10) e o Manual de Psiquiatria de Kaplan e Sadock.

O estudo sistêmico dessas psicopatologias interessa aos profissionais cujo bem-estar e produtividade dependem fortemente do relacionamento interpessoal, porque elas afetam o resultado do trabalho e influenciam diretamente a qualidade de vida.

Além das questões interpessoais ligadas ao relacionamento com os clientes, o advogado também está sujeito a eventos ligados ao próprio psiquismo. Todas as pessoas são vulneráveis, por exemplo, a ansiedades e depressões, como reações aos estímulos aversivos que o cotidiano proporciona-lhes em casa e no trabalho.

É preciso ir além dos cuidados com a saúde física: impõe-se um olhar zeloso para a saúde mental, ainda mais porque ambas são indissociáveis. Uma dor nas costas, uma crise de gastrite ou uma cefaleia podem originar-se da tensão provocada pelos conflitos com clientes, autoridades ou colegas de profissão, da expectativa a respeito do resultado de um julgamento, do resultado do teste de gravidez da filha adolescente... A sociedade precisa e deve ampliar, cada vez mais, seus conhecimentos a respeito dos transtornos mentais, que nada têm de “anormal”, para aprender a atuar preventiva e corretivamente, poupando sofrimentos e gastos desnecessários.

8.1. Saúde mental e transtorno mental

Kaplan e Sadock assinalam que se torna “mais aceitável ter um problema médico ou cirúrgico do que um problema mental” (KAPLAN; SADOCK, op. cit., p. 5). A simples sugestão da presença de um transtorno mental acarreta reações imprevisíveis do indivíduo, de seus familiares e colegas, graças à desinformação e ao preconceito.

Anedotas, relatos, notícias e filmes sobre “doentes mentais” e as respectivas formas de tratamentos favoreceram o desenvolvimento e a manutenção de um lúgubre imaginário, a despeito dos significativos avanços em diagnóstico, farmacoterapia e psicoterapia dos transtornos mentais, notadamente a partir de 1950, quando novos psicofármacos iniciaram sistemática redução do sofrimento, contribuíram para a efetiva humanização dos tratamentos e aumentaram o êxito na remissão dos efeitos de muitos transtornos mentais considerados incapacitantes para a vida social.

Características e diagnósticos dos transtornos, orgânicos ou mentais, sofrem contínua transformação ao longo do tempo. “As causas de morte passaram de doenças causadas por infecção para doenças relacionadas ao comportamento e estilo de

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vida” (HUFFMAN; VERNOY; VERNOY, op. cit., p. 455). Paralelamente, transtornos pouco ou menos presentes há algumas décadas acentuam-se, enquanto outros apresentam redução. Por exemplo, registra-se perceptível aumento de transtornos associados a estresse.

O mesmo acontece com os resultados dos diagnósticos, explica Thomas Szasz, professor emérito de Psiquiatria na State University of New York: pelo fato de serem “interpretações sociais, eles variam de tempo em tempo e de cultura a cultura” (SZASZ, 1996, p. 12). Exemplos: masturbação e homossexualidade. Sintomas estão ligados à cultura. Para alguns povos, “dor de cabeça” constitui resposta ao estresse; para outros, a resposta socialmente mais bem compreendida é “perda de memória” (HUFFMAN; VERNOY; VERNOY, op. cit., p. 533). A conclusão é que a mudança social engendra transtornos mentais socialmente adaptados! Cada época possui sua própria síndrome. O observador atento percebe que “DORT”queixa tão comum e que gera inúmeras ações indenizatórias — é um transtorno fisiológico relacionado com atividades repetitivas em algumas categorias sociais e não em outras, o que sugere uma conotação emocional.

Levantamentos realizados pelos autores, ainda que não estruturados dentro de todo o rigor de uma pesquisa científica, porém, significativos, sugerem que profissionais autônomos, que dependem diretamente do resultado da produtividade de seus esforços, conseguem trabalhar continuamente em digitação, apresentando incidência de queixas ou sinais de DORT e outras patologias típicas de natureza musculoesquelética substancialmente inferior à que se verifica com profissionais que realizam as mesmas atividades, porém, com vínculo empregatício. Parece existir uma correlação positiva entre a incidência das queixas e a garantia de recebimento da remuneração.

A esse respeito, merece atenção a frase do MM. Juiz do Trabalho da 5ª Região, na Bahia, a respeito das más condições de trabalho ainda hoje existentes no Brasil
(5.2.06): “no interior eu via um exército de mutilados pelo trabalho com sisal. Hoje eu vejo um exército de mutilados por lesão de esforço repetitivo”. Observe-se que o resultado final — a incapacitação para o trabalho — pode ser idêntico, entretanto, as causas são completamente diferentes. Enquanto as máquinas e procedimentos do trabalho mecânico amputavam dedos, mãos e até braços, os processos do trabalho de altíssima eficiência, associados às condições de vida — físicas e psíquicas — dos indivíduos promovem conflitos emocionais capazes de desencadear transtornos de ordem somática, aparentemente sem qualquer vínculo de causalidade.

Um risco que se corre, para a saúde pública e do trabalhador, especificamente, é considerar que os diferentes tipos de queixas possam ter causas semelhantes, capazes de serem neutralizadas por meio de legislações abrangentes, que não considerem as peculiaridades dos processos. Coibir a repetição de esforços, por exemplo, pode em nada contribuir para a melhoria da qualidade de vida do trabalhador quando as lesões osteomusculares originam-se de conflitos intrapsíquicos que o organismo se encarrega de combater com as armas de que dispõe.

O Departamento de Saúde e Serviço Social dos Estados Unidos alerta que, na população norte-americana, uma em cada três pessoas adultas terá algum tipo de transtorno mental no decorrer da vida, e que a maioria das pessoas não procura ajuda

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(Você, 1991, p. 4), um prognóstico que, com toda a certeza, aplica-se aos moradores das grandes cidades brasileiras contemporâneas, onde os estímulos provocadores de estresse fazem parte do cotidiano.

Entende-se como indivíduo “mentalmente saudável” aquele que (ibidem, p. 5):

• compreende que não é perfeito;

• entende que não pode ser tudo para todos;

• vivencia uma vasta gama de emoções;

• enfrenta os desafios e mudanças da vida cotidiana;

• sabe procurar ajuda para lidar com traumas e transições importantes (isto é, não se considera onipotente).

Para George Kelly (1905-1967), a pessoa sadia “muda construtos pessoais que se originam de predições refutadas pela experiência. A pessoa não sadia (...) tem uma teoria sobre consequências (...) que não funciona, mas não consegue mudá-la” (HALL; LINDZEY; CAMPBELL, op. cit., p. 329), isto é, enquanto a pessoa sadia mostra-se flexível em rever seus conceitos, a não sadia apega-se a eles a despeito de experiências que comprovam sua inadequação.

A expressão transtorno mental, adotada em lugar de “doença”, acompanha o critério da CID-10, em que se enfatiza que o desvio ou conflito social sozinho, sem comprometimento do funcionamento do indivíduo, não deve ser incluído em transtorno mental (Classificação, 1993, p. 5). O funcionamento encontra-se comprometido quando:

funções mentais superiores recebem interferência, dificultando ou afetando a atuação (por exemplo, o indivíduo não consegue lembrar-se de compromissos);

• atividades da vida diária, rotineiras, usualmente necessárias, sofrem comprometimento em algum grau.

Nessas circunstâncias, o indivíduo mostra-se impossibilitado de atuar dentro dos padrões de normalidade, aceitos como tais em seu ambiente, e isso se torna perceptível para as pessoas que com ele interagem. Destaque-se que “normalidade e anormalidade existem em um continuum (...) À primeira vista, pessoas com distúrbios psicológicos são geralmente indistintas daquelas que não os têm” (WEITEN, op. cit., p. 411). O diagnóstico por profissionais especializados é indispensável para qualquer conclusão.

MM, jovem e batalhador advogado, enfrentou um processo em que o cliente, réu, deveria comportar-se perante o júri de maneira convincente. Tratava-se de pessoa acusada de agressão; porém, diversos atenuantes aplicavam-se. Ocorre que o réu, emocionalmente abalado, apresentava um episódio de depressão que o tornava muito pouco comunicativo, com o risco de transmitir a falsa impressão de desinteresse. MM valeu-se da ajuda de um psiquiatra para, com a medicação adequada, obter uma melhora no estado de humor do paciente.

Destaque-se que o mascaramento de muitos transtornos mentais por sinais e sintomas somáticos faz com que se invistam grandes somas no combate a manifestações secundárias, com resultados nulos. Os indivíduos assim afetados permanecem com qualidade de vida e produtividade reduzidas, em contínua busca de assistência médica, e contribuem para aumentar os custos da medicina para toda a sociedade.

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8.2. Noções sobre transtornos mentais

Este tópico inclui descrições de sinais de transtornos mentais mais facilmente identificáveis e tipicamente presentes no ambiente de trabalho do advogado, sem a preocupação de uma descrição exaustiva; busca-se propiciar ao profissional condições mínimas que lhe possibilitem...

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