Análise dos julgados selecionados

AutorJuliana Maggi Lima
Páginas91-119
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ANÁLISE DOS JULGADOS
SELECIONADOS
Até este capítulo, buscou-se apresentar a f‌luidez do conceito sociológico,
histórico e, especialmente, jurídico de família, questionar o que de fato signif‌ica
“família tradicional”, bem como a repercussão do conceito para além da constitui-
ção da família, para garantir o acesso a determinados direitos, além de apresentar
elemento que vem sendo apropriado pelo direito de família e se encontra em fase
de desenvolvimento teórico: o afeto ou afetividade.
A (historicamente) recente superação da exclusividade da família matrimonial,
com a inclusão constitucional de outras modalidades dessa instituição, precedeu o
ainda mais recente reconhecimento por tribunais superiores de uma nova modali-
dade de família: a homoafetiva.
Para além de discutir a existência jurídica ou não dessa formação familiar, o
reconhecimento em si nos concede uma oportunidade relevante para analisar como
esses tribunais entendem o que é família. Quais elementos são aptos a consolidar
uma nova forma juridicamente protegida sob o manto do formato de família, que
recebe especial proteção do Estado?
A seleção dos julgados a seguir estudados buscou diferentes vínculos dentro
da família homoafetiva, para entender se há diferença jurídica entre esta e a família
heteroafetiva e, ainda que não se busque estabelecer um conceito jurídico def‌initivo1,
1. Sobre a conceituação jurídica de família, Giselda Hironaka ref‌lete sobre a impossibilidade de def‌inição,
justamente em razão da f‌luidez do termo e das disputas entre poderes sociais para que prevaleça seu enten-
dimento sobre família: “Não nos parece possível af‌irmar que a família ‘é’, na acepção sociológica do termo,
já que nessa perspectiva as famílias sempre foram um ‘vir a ser’. Talvez apenas do ponto de vista do direito
positivo nos seja dado, em países como o Brasil, reproduzir conceitos em voga nos muitos períodos da
história. O problema surge pela obviedade de que conceituar signif‌ica limitar fenômenos pela convenção
de padrões, que nem sempre estão ligados apenas à convenção da maioria, senão a dos que detêm o poder,
enquanto argumento de autoridade. Por isso, dizer o que família ‘é’ para o direito necessariamente requer
que fechemos os olhos para um sem-número de fatos sociais essencialmente representativos da família,
mas que por vezes não se encaixariam nas letras frias de um invólucro qualquer do Direito positivado.
Daí a necessidade de que os conceitos sejam cada vez mais abertos, especialmente em matéria de família.
Esse é o estágio atual da nossa codif‌icação, o da mobilidade das suas cláusulas, da efetiva quebra daquele
paradigma limitador dos conceitos, para que a dinâmica jurídica possa criar, de forma lógica, jurídica e
socialmente fundamentada tantos quantos sejam necessários à solução dos casos práticos” (HIRONAKA,
2015, p. 54).
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FAMÍLIA HOMOAFETIVA NA JURISPRUDÊNCIA DO STF E DO STJ • Juliana Maggi liMa
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identif‌icar os elementos que os ministros consideram necessários para a existência
dessa instituição.
É sinal de rápida mudança de paradigma que uma formação social homoafetiva
seja considerada apta a constituir uma família, uma vez que as relações homossexuais
eram até pouco tempo repudiadas socialmente, por exemplo, a homossexualidade
passou a ser descriminalizada na Grã-Bretanha na segunda metade da década de
1960, e o primeiro Estado norte-americano a deixar de punir a “sodomia” foi Illinois,
em 1961 (HOBSBAWM, 1995, p. 322).
A aceitação da homoafetividade como algo “normal” é, portanto, recente. Por
isso, surpreende a rapidez com que essas relações passaram a fazer parte da disputa
política no Ocidente, recebendo proteção sob o formato de família em diversos
países. Tudo isso demonstra a relevância desse movimento social.
Em alguns países, como os já mencionados França e Espanha, além dos sul-
-americanos Uruguai (em 2013) e Argentina (2010), o casamento homoafetivo é
permitido por meio de def‌inição do Parlamento, isto é, de alteração legislativa. Em
outras nações, assim como no Brasil, a família homoafetiva tem sido reconhecida
ou validada pelo Poder Judiciário, caso dos Estados Unidos, onde alguns Estados já
permitiam o casamento homoafetivo quando a questão foi pacif‌icada pela Suprema
Corte, em 2015, com o julgamento do caso Obergefell vs. Hodges.
Apesar das discussões gramaticais sobre o texto constitucional brasileiro, ele
não proíbe expressamente o casamento entre pessoas do mesmo gênero2. Da mesma
forma, não há exigência expressa da dualidade de gêneros na parentalidade ou na
união estável.
O direito de família brasileiro, como já demonstrado, tem sido construído, tam-
bém, a partir da superação da legislação supostamente literal pelo Poder Judiciário,
na tentativa de, em casos concretos, reparar injustiças causadas, essencialmente,
pelo não reconhecimento de uma família de fato ou pelo não reconhecimento como
família de uma construção social muito similar ao que se entendia como essa entidade.
Nelson Carneiro enfatizou a relevância da jurisprudência na construção do direito
de família e do próprio conceito de família, como no já mencionado reconhecimento
jurisprudencial da legitimação de f‌ilhos e na admissão de direitos à companheira,
quando tal termo sequer era reconhecido (CARNEIRO, 1977, p. 14-15).
Não apenas no Brasil, mas em diversas partes do mundo ocidental, a família e
seus direitos têm sido objeto de constantes questionamentos às Cortes Constitu-
cionais, que examinam desde a possibilidade de constituição de família (pela união
2. A CF 88 trata do casamento nos parágrafos do art. 226 sem mencionar a dualidade de gêneros. Ainda que
o faça em relação à união estável, não há, gramaticalmente falando, uma proibição expressa à sua consti-
tuição por pessoas do mesmo gênero: art. 226, § 3º. “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a
união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em
casamento”.
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