Família: entidade merecedora de especial proteção do estado

AutorJuliana Maggi Lima
Páginas7-55
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FAMÍLIA: ENTIDADE MERECEDORA
DE ESPECIAL PROTEÇÃO DO ESTADO
A família é núcleo social tão importante em nossa sociedade que é objeto das
mais diversas áreas: psicologia1, ciências sociais (SINGLY, 2011), direito, economia2
etc. “É a forma mais rudimentar de agrupamento social” (HIRONAKA, 2016, p. 29),
sendo tanto um espaço físico quanto imaginário, de relação e local de construção
social privilegiado que remete à espontaneidade, naturalidade, afetividade, autenti-
cidade, arquétipo de solidariedade, dentro do qual se desenvolvem as experiências
individuais de nascer, desenvolver-se, morrer, de sexualidade e procriação (SARA-
CENO; NALDINI, 2013, p. 9-10).
Por meio da família, o indivíduo se desenvolve enquanto ser humano; é nela
que recebe os primeiros cuidados e sua formação moral e social, competindo aos
adultos os cuidados com os que ainda não podem se autogerir, tal como as crianças
1. O tema foi muito explorado pelos grandes nomes da área do f‌inal século XIX e começo do século XX,
como Sigmund Freud, cujo conceito de complexo de Édipo, relacionado ao desejo sexual do f‌ilho pela
mãe, foi um dos grandes pilares de sua teoria: “E, na realidade, existe um motivo na história do Rei Édipo
que explica o veredito dessa voz interior. O destino dele nos move apenas porque poderia ter sido nosso
próprio destino, porque o oráculo colocou sobre nós, antes de nosso nascimento, a mesma maldição que
recaía sobre ele. Pode ser que fôssemos todos destinados a direcionar nossos primeiros impulsos sexuais às
nossas mães e nossos primeiros impulsos de ódio e violência a nossos pais; nossos sonhos nos convencem
de que sim. O rei Édipo, que assassinou seu pai, Laio, e se casou com sua mãe, Jocasta, não é nada mais
que a realização de um desejo – a realização do desejo de nossa infância. Mas nós, mais afortunados do que
ele, na medida em que não nos tornamos psiconeuróticos, fomos bem-sucedidos desde nossas infâncias
em refrear os impulsos sexuais em relação a nossas mães e esquecer o ciúme que sentimos de nossos pais”
(tradução livre desta autora). No original: “And there actually is a motive in the story of King Oedipus
which explains the verdict of this inner voice. His fate moves us only because it might have been our own,
because the oracle laid upon us before our birth the very curse which rested upon him. It may be that we
were all destined to direct our f‌irst sexual impulses toward our mothers, and our f‌irst impulses of hatred
and violence toward our fathers; our dreams convince us that we were. King Oedipus, who slew his father
Laius and wedded his mother Jocasta, is nothing more or less than a wish-fulf‌ilment – the fulf‌ilment of the
wish of our childhood. But we, more fortunate than he, in so far as we have not become psychoneurotics,
have since our childhood succeeded in withdrawing our sexual impulses from our mothers, and in forget-
ting our jealousy of our fathers” (FREUD, 1900, p. 85).
2. Ainda que não seja o tema do livro, a família, sua organização e as consequências que sofre pelo capitalismo
são descritas em O capital: “Vossos estatísticos burgueses vos dirão, por exemplo, que os salários médios
das famílias que trabalham nas fábricas do Lancashire subiram. Mas se esqueceram de que agora, em vez
de ser só o homem, o cabeça da família, são também sua mulher e, talvez, três ou quatro f‌ilhos que se veem
lançados sob as rodas do carro de Jaguernaut do capital e que a alta dos salários totais não corresponde à
do sobretrabalho total arrancado à família” (MARX, 1996, p. 112). Veja-se que a família mencionada por
Marx é a monogâmica, heterossexual, procriacional.
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FAMÍLIA HOMOAFETIVA NA JURISPRUDÊNCIA DO STF E DO STJ • Juliana Maggi liMa
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(art. 227, caput, CF) ou os que necessitam de amparo especial, por exemplo, os
idosos (art. 230, CF). Os principais fatos da vida, nascer e morrer, estão, em regra,
inseridos no contexto familiar.
A família é um meio e um ator político ao mesmo tempo: pode ser um local de
emancipação, de desenvolvimento do ser humano, como também uma ferramenta
de controle social para manutenção da riqueza dentro de um grupo social específ‌ico3;
pode ser o meio pelo qual se adquire o direito de existir em determinado país, isto
é, pela família se pode adquirir determinada cidadania (ius sanguinis), e a família
atua na própria realidade social enquanto sua conf‌iguração impacta na sociedade
(exemplo: o crescimento de famílias com apenas um f‌ilho leva a uma alteração da
relação intergeracional) (SARACENO; NALDINI, 2013, p. 7). Sua conf‌iguração
independe de formalidades jurídicas, ao contrário do casamento, que depende de
celebração solene, sendo um grupo sem personalidade jurídica própria (GOMES,
1999, p. 1; CICU, 1914, p. 82)4.
Ao tratar da relevância da família para o desenvolvimento da pessoa humana,
Rodrigo da Cunha Pereira ressalta a importância dessa entidade na transição do
mundo exclusivamente biológico para o social. Para esse autor, a família seria o
núcleo essencial do sujeito, sobre o qual será formada sua estrutura (PEREIRA,
2015, p. 287-288)5.
A natureza gregária do homem foi e continua a ser objeto de estudo e pesquisa.
Por intermédio dos grupos sociais, o homem conseguiu desenvolver suas compe-
tências e potencializar seus recursos para sobreviver (DINIZ, 2011, p. 5-6).
Assim, diversos são os grupos sociais a que o homem pertence ao longo da vida
(SUNDFELD, 2004, p. 19). Alguns deles são duradouros e outros são passageiros,
como a família e o grupo de empregados de determinada empresa, respectivamente.
Apenas alguns merecem específ‌ica tutela jurídica, como a família.
Segundo Jean-Jacques Rousseau6,
3. Por exemplo, se considerada a conclusão de Thomas Piketty, de que a herança continua sendo meio de
manutenção de desigualdade por meio da perpetuação da concentração de riquezas, uma vez que a capaci-
dade de a herança gerar riqueza ainda é maior do que a capacidade de o trabalho de gerar capital (PIKETTY,
2014, p. 368-386).
4. “A família não é hoje pessoa jurídica, entidade por si só, sujeito de direitos: o que é opinião absolutamente
dominante (...). Não falta, todavia quem tenha ousado af‌irmar a personalidade jurídica da família, argu-
mentando sobre a unidade de nome, o direito a títulos de nobreza (...)” (tradução livre desta autora). No
original: “La famiglia non è oggi persona giuridica, ente a sè, soggeto di diritti: ciò è opinione assolutamente
dominante. (...) Non manca, tuttavia chi abbia osato affermare la personalità giuridica della famiglia,
argomentando dall’unità di nome, dal diritto al titoli nobiliari (...)” (CICU, 1914, p. 82).
5. “(...) sempre haverá, de uma forma ou de outra, algum tipo de núcleo familiar que fará a passagem da
criança do mundo biológico, instintual, para o mundo social. Neste sentido, é que ela é o núcleo básico,
fundante e estruturante do sujeito” (PEREIRA, 2015, p. 287-288).
6. Veja-se o uso do termo “pai” como referência a chefe de família, confundindo-se com a própria noção de
família.
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A mais antiga de todas as sociedades, e a única natural, é a da família. As crianças apenas perma-
necem ligadas ao pai o tempo necessário que dele necessitam para a sua conservação. Assim que
cesse tal necessidade, dissolve-se o laço natural. As crianças, eximidas da obediência devida ao
pai, o pai isento dos cuidados devidos aos lhos, reentram todos igualmente na independência.
Se continuam a permanecer unidos, já não é naturalmente, mas voluntariamente, e a própria
família apenas se mantém por convenção (ROUSSEAU, 2010, p. 11).
Porém, essa conformação social não tem formato único, sendo o termo entendi-
do de forma distinta em diferentes sociedades (e o conceito pode não ser uno dentro
de uma mesma sociedade) (SARACENO; NALDINI, 2013, p. 9-10)7, como a nossa
atual, em que há disputa pela def‌inição desse conceito. Assim como a sociedade
passa por constantes transformações, com o passar o tempo esse conceito também
se altera. François de Singly inicia seu livro Sociologia da família contemporânea da
seguinte forma:
Ao abrir um livro de síntese sobre a família, espera o leitor ou a leitora encontrar, pelo menos, uma
resposta clara à pergunta “O que é uma família?”. Não a encontrará, porém, nesta obra, visto que
uma das especicidades das famílias contemporâneas é a “uidez” desta denição. Por exemplo,
o desparecimento progressivo não do casamento mas da sua legitimidade é uma das mudanças
mais marcantes na Europa a partir dos anos 1960. Nas estatísticas ociais da Comunidade Euro-
peia, os casais resultantes do casamento e da união de facto são agrupados na mesma categoria.
Em França, os lhos “naturais” (nascidos fora do casamento) e os lhos “legítimos” (nascidos no
seio do casamento) são abrangidos pelo mesmo capítulo do Código Civil e não é permitido, para
efeitos de herança, discriminar os lhos com base neste critério. (...) A família contemporânea
existe menos em função de critérios formais do que em relação a uma dupla exigência: criação
de um quadro de vida onde cada um possa desenvolver-se ao mesmo tempo em que participa
de uma obra comum. A família não se tornou, portanto, um espaço sem marcas, sem normas,
sem referências, sem lugar. Uma família “boa” (socialmente considerada como tal) é, em última
instância, um grupo que permite a pequenos e grandes um reconhecimento de tipo particular: uma
“solicitude pessoal” (na linguagem de Axel Honneth) e um apoio por parte dos outros signicativos
(na linguagem de Peter Berger e Hans Kellner), acompanhados pelo care (na linguagem de Carol
Gilligan e de Jaon Tronto). Este apoio, esta solicitude e esta validação requerem da parte dos pais
competências e práticas capazes de implementar novas formas que enquadrem a família; não
são garantidos pela orientação sexual dos pais, a não ser que se confunda reprodução biológica
com produção social e psicológica da criança (SINGLY, 2011, p. 7).
Ao tratar da família no século XIX, Friedrich Engels af‌irma que diferentes so-
ciedades ref‌letem a consanguinidade de forma absolutamente distinta. Em algumas
sociedades, o vínculo consanguíneo é relevante, mas não leva às mesmas formas de
relação que temos hoje como predominante no mundo ocidental8.
7. “Por outro lado, também em uma mesma sociedade e época podem conviver formas distintas de def‌inir a
família não só por motivos de valores, mas por exigências burocráticas, administrativas, das políticas sociais”
(tradução livre desta autora). Do original: “D’altra parte, anche in uma stessa società ed epoca possono
convivere modi di def‌inire la famiglia diversi non solo per motivi di valore, ma per esigenze burocratiche,
amministrative, di politiche sociali” (SARACENO, NALDINI, 2013, p. 9-10).
8. “Morgan, que passou a maior parte de sua vida entre os iroqueses – ainda hoje estabelecidos no Estado
de Nova York – e foi adotado por uma de suas tribos (a dos senekas), encontrou um sistema de consan-
guinidade, vigente entre eles, que entrava em contradição com seus reais vínculos de família. Reinava ali
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