A família homoafetiva: do direito a existir ao direito a constituir família

AutorJuliana Maggi Lima
Páginas65-89
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A FAMÍLIA HOMOAFETIVA:
DO DIREITO A EXISTIR AO DIREITO
A CONSTITUIR FAMÍLIA
4.1 HOMOSSEXUALIDADE CONTEMPORÂNEA: O DIREITO A EXISTIR
O conceito de homossexualidade pode ser visto de forma simplista e reduzido
como o desejo romântico sexual por pessoas do mesmo sexo. Porém, hoje se ques-
tionam conceitos tidos como inerentes à sexualidade, como a própria noção de sexo
em contraposição ao conceito de gênero. Ao falar de sexualidade, podemos entender
que seu exercício é def‌inido pela forma como dividimos as pessoas: entre homens e
mulheres. E a forma majoritariamente aceita para def‌inir se um indivíduo é homem
ou mulher é a análise da genitália externa. Essa noção tão predominante vem sendo
questionada pelas novas teorias de gênero, segundo as quais a construção do que
entendemos por homem e por mulher são sociais e culturais (BUTLER, 2017, p.
23-34). É quase impossível dissociar uma discussão da outra, pois, se a homosse-
xualidade consiste no desejo por pessoas iguais, precisamos saber qual é o critério
para entender o que são pessoas iguais (TOLEDO 2016, p. 68-69).
Os atuais questionamentos sobre sexo e gênero envolvem assuntos desde reli-
giosidade até a própria noção da divisão de seres humanos entre homens e mulheres,
divisão esta que pode ser entendida, por exemplo, como biológica/genital (já que a
avaliação de um bebê é feita de acordo com a parte exterior dos órgãos reprodutivos)
e cultural (uma forma de criar pessoas divididas entre si por um critério escolhido,
como a genitália externa, e determinar a forma como ela é vista e tratada pela socie-
dade a partir disso).
A sexualidade também é mais complexa do que a dicotomia entre hétero (tido
como padrão de normalidade) e homossexual. A bissexualidade, por exemplo, di-
fere da noção comum de uma pessoa que é por vezes hétero e em outros momentos
homossexual e ainda muito incompreendida, havendo pessoas que se identif‌icam
como assexuais, entre outras orientações (VITAL, 2016, p. 131-132).
Pelas limitações da delimitação do trabalho, não se aprofundará sobre os aspec-
tos que envolvem a construção de gênero e sexualidade, mas se partirá da noção de
que o que entendemos hoje como homem e mulher e a categorização da sexualidade
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FAMÍLIA HOMOAFETIVA NA JURISPRUDÊNCIA DO STF E DO STJ • Juliana Maggi liMa
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são fruto de valores e entendimentos culturais, não de fatos da natureza. Essa divisão
pode encontrar fundo em motivos religiosos (deus criou o homem e a mulher), bio-
lógicos (homens possuem características físicas determinadas e mulheres, outras)
ou outros. Independentemente do critério que tenha sido escolhido para a divisão
em sexos ou gêneros e em categorias de sexualidade, há uma decisão epistemológica
sobre a forma de estabelecer essas categorias. Ou seja, a ideia de hétero ou homos-
sexualidade está intimamente ligada ao que entendemos por homem e mulher e os
fundamentos desses conceitos.
Assim, para f‌ins deste trabalho, de forma reducionista, teremos a homosse-
xualidade como a atração sexual por pessoas do mesmo gênero, ainda que essa
def‌inição seja limitadora e não abarque a diversidade de def‌inições de gênero ou de
expressões da sexualidade dentro da própria noção de homossexualidade (TOLEDO
2016, p. 69).
A ideia de homossexualidade sofreu alterações dentro de tempo e espaço.
Há registros de que relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo acompanham a
humanidade desde tempos remotos1. O que chamamos hoje de homossexualidade
tem sido aceito, tolerado ou rejeitado em diferentes sociedades e épocas (CHAVES,
2012, p. 37). Desde o surgimento do Cristianismo a homossexualidade passou a
ser reiteradamente reprimida e condenada pela maioria das sociedades ocidentais.
Até mesmo ferrenhos opositores dos homossexuais, como o pastor estadunidense
Landon Schott (2016)2, reconhecem que a homossexualidade acompanha a história
da humanidade.
1. Em tradução livre desta autora: “Há uma vasta documentação dos ‘ancestrais’ da homossexualidade mo-
derna – nas antigas Grécia, Roma e China, na Europa ocidental no começo da Idade Média, no Japão entre
guerreiros samurais medievais e nas casas de chá do período Edo (1603-1868); na Inglaterra, nas ‘casas de
maricas’ (espaços públicos e bares frequentados por homens com atração por outros homens) do século
XVII. Havia papéis sociais que admitiam relações homossexuais em várias culturas nativas na América do
Norte, Polinésia e Sibéria. Entre muitas tribos nativas americanas, por exemplo, havia Espíritos masculinos
(e às vezes femininos) – que vestiam a roupa do sexo oposto, muitas vezes tomavam como maridos e esposas
membros do mesmo sexo e assumiam papéis sagrados nas cerimônias tribais”. No original: “There is a
rich documentation of the ‘ancestors’ of the modern homosexual – in ancient Greece, Rome and China; in
Western Europe in the early Middle Ages, in Japan among medieval samurai warriors and in the tea houses
of the Edo period (1603-1868); in England, in the ‘molly houses’ (public houses and taverns frequented by
men attracted to other men) of the eighteenth century. There were social roles that countenanced same-sex
relations in various native cultures in North America, Polynesia and Siberia. Among many American Indian
tribes, for example, there were male (and sometimes female) berdache – who dressed in the clothes of the
opposite sex, often took as husbands and wives members of the same sex, and took sacred roles in tribal
ceremonies” (MILLER, 2008, p. XVI).
2. O pastor Landon Schott se coloca de forma que pode induzir as pessoas a uma percepção equivocada: a de
que ele seria um apoiador dos homossexuais, pois af‌irma amá-los e compreendê-los. Contudo, o sacerdote
prega que os homossexuais lutem contra sua homossexualidade, o que pode trazer sérias consequências,
especialmente a jovens que estão começando a lidar com a sua realidade. A incidência de depressão e suicídio
entre jovens LGBT é maior que a média dos jovens que não pertencem a esse grupo, como demonstram
estudos desde a década de 1980 (RUSSEL; FISH, 2016).
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