As famílias brasileiras: mudanças e perspectivas frente aos avanços médicos e biotecnológicos

AutorGuilherme Calmon Nogueira da Gama
Páginas81-102
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AS FAMÍLIAS BRASILEIRAS: MUDANÇAS E
PERSPECTIVAS FRENTE AOS AVANÇOS MÉDICOS E
BIOTECNOLÓGICOS
Guilherme Calmon Nogueira da Gama
Sumário: 1. Biodireito e nova filiação; 2. Técnicas de reprodução assistida
e normas jurídicas; 3. Visão dos Conselhos de Medicina; 4. Visão do
Conselho Nacional de Justiça; 5. Polêmicas no Direito brasileiro; 5.
Considerações finais.
1. Biodireito e nova filiação
Na contemporaneidade várias questões advindas dos avanços
tecnológicos na vida das pessoas não são apenas objeto de preocupação no
campo da Bioética. É necessária a formulação de regras dotadas dos
atributos da obrigatoriedade, generalidade, coercibilidade e
imperatividade, a ensejar o surgimento e o desenvolvimento do Biodireito.
A partir do momento em que alguns temas deixam se referir apenas aos
centros de pesquisa, aos hospitais e clínicas médicas, aos biocientistas e
aos médicos, as preocupações relacionadas à Bioética ocuparam o espaço
comunitário, caracterizado pelo pluralismo, interdisciplinariedade,
democracia, solidariedade, interessando não apenas as atuais, mas também
as futuras gerações.1 O progresso da Medicina e da Biologia no âmbito das
técnicas de reprodução humana assistida e da possibilidade de
manipulações genéticas repercutiu claramente nas famílias, alterando
vários conceitos no limiar de um novo Direito de Família.2 Sentiu-se a
necessidade da construção do Biodireito para servir de instrumento para o
estudo, o debate e a solução de tais questões sob a perspectiva jurídica.
1 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A Nova Filiaçã o. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.
55.
2 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Hera nça legítima ad tempus. São Paulo: Ed. RT,
2018, p. 26.
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A promulgação e início de vigência do Código Civil de 2002
propiciaram o início e desenvolvimento de debates acerca de temas nunca
antes tratados em textos codificados brasileiros, como os aspectos civis
referentes à filiação decorrente do emprego de técnicas de reprodução
assistida nas várias modalidades e espécies já conhecidas pela Ciência.
Há ainda, no Brasil, omissão legislativa a respeito de vários temas
relacionados à reprodução humana assistida3, diversamente do que ocorre
em outros países como as Leis francesas ns. 653 e 654, ambas de 1994, a
Lei espanhola n. 35, de 1988, por exemplo. O Direito brasileiro ainda se
ressente do debate interdisciplinar, democrático, pluralista e humanista a
respeito de tais questões, como o destino dos embriões excedentários, as
técnicas de reprodução assistida “post mortem” e de maternidade de
substituição, entre outras.
É preciso que se proceda à leitura moral dos direitos humanos e
dos direitos fundamentais, de modo a encampar a manifestação dos valores
éticos e solidários no sistema jurídico brasileiro. Cuida-se de identificar as
autênticas e necessárias fontes legitimadores do Direito.
Outro dado digno de nota é a insuficiência do modelo tradicional
de construção e formulação das normas jurídicas acerca de variados temas,
em especial nos aspectos relacionados aos avanços científicos no segmento
da vida humana. A técnica regulamentar, por óbvio, não pode mais ser a
única considerada nesta atividade legislativa, devendo-se reconhecer a
característica da narração como importante no novo modelo de construção
das normas jurídicas, na precisa lição de Erik Jayme.4
Vários princípios e regras constitucionais constantes do texto
brasileiro de 1988 devem ser considerados aplicáveis a vários temas
relacionados à biotecnologia. No segmento do Direito de Família e os
impactos que os avanços científicos causaram nos temas da paternidade,
maternidade e filiação, a metodologia civil-constitucional se afigura como
a mais adequada e correta na busca da solução das questões conflituosas
que podem surgir.
No segmento da filiação (e, obviamente, da paternidade e da
maternidade), é de fundamental importância identificar o projeto parental
que o casal (heterossexual ou homossexual) decidiu concretizar. O Estado
3 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito Civil: Família. São Paulo: Atlas, 2008, p. 350.
4 JAYME, Erik. Cours general de droit international privé. Recueil des cours. Académie de Droit
International, t. 251. The Hague Boston-London: Martinus Nijhoff Publishers, 1997, p. 36-37.

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