Biotecnologias reprodutivas e família: implicações bioéticas, sociais e legais do uso das tra e novos arranjos familiares

AutorMarilena Cordeiro Dias Villela Corrêa
Páginas57-79
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BIOTECNOLOGIAS REPRODUTIVAS E FAMÍLIA:
IMPLICAÇÕES BIOÉTICAS, SOCIAIS E LEGAIS DO
USO DAS TRA E NOVOS ARRANJOS FAMILIARES
Marilena Cor deiro Dias Villela Corr êa
Sumário: 1. Introdução. 2. Antecedentes da incorporação pelas TRA no
Brasil. 3. Uma regulamentação a cargo da medicina: entraves e desafios.
4. O Brasil e a cadeia reprodutiva transnacional. 5. Considerações finais.
1. Introdução
A história social da reprodução medicamente assistida sofreu uma
profunda inflexão com a publicação científica do primeiro sucesso da
utilização da técnica de fertilização in vitro, FIV.1 Esse primeiro
nascimento de uma bebê saudável, a partir de embrião fecundado fora do
corpo da mulher, em um laboratório biomédico e suas lógicas, é o ponto
de partida para novas biotecnologias que ultrapassarão, em muito, o que se
convencionou denominar de tratamento, produzindo um fato sociotécnico
novo de implicações que também transbordam a área biomédica.
Indicada, ao final dos anos 1970, para casos medicamente bem
delimitados de infertilidade tubária, a aplicação das tecnologias de
reprodução assistida (TRA) se ampliaram, sendo hoje usadas para uma
vasta gama de estados de subfertilidade e, principalmente, em situações
sociais não reprodutivas: como na demanda e uso por pessoas sozinhas,
por homossexuais, em situações post-mortem, entre outras. Essas situações
foram as que acentuaram a necessidade de agregação da FIV a recursos,
técnicas ditas complementares ou coadjuvantes, como o congelamento, as
1 Até lá, a abordagem das infertilidades ou subfertilidades se limitavam a tratamentos clínicos
(hormonais) da mulher; cirúrgicos (quando aplicáveis) no homem; ou a chamada inseminação
artificial que era a introdução, pelo médico, do sêmen no corpo da mulher. STEPTOE, P. C.;
EDWARDS, R. G. Birth a fter reimplanta tion of a human embryo. The Lancet London, v. ii, n.
366, 1978.
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trocas (por doação ou venda) de gametas, embriões, útero uma vez que a
reprodução humana é ainda sexuada, não prescindindo de células
reprodutivas diferentes - masculinas e femininas -, além de um útero para
a gestação.
Se, por um lado, esse conjunto biotecnológico provocou e continua
a provocar rupturas excepcionais no nível dos processos vitais, , indo muito
além do objetivo inicialmente antevisto na área médica de “um
tratamento” das esterilidades tubárias” -, por outro lado, as TRA seguem a
lógica do contínuo processo de medicalização social do corpo da mulher e
da reprodução humana (gestação, parto, cuidados pré e neonatais,
amamentação etc. que já eram objeto de discurso médico, do qual o
conhecimento feminino ancestral foi progressivamente afastado).
Essa perspectiva permitiu que alguns autores debatessem a
medicalização da “ausência involuntária de filhos” pelas TRA2, menos
como uma ruptura do que como a continuidade na tradição de
medicalização do corpo da mulher que revela, da forma a mais acabada
possível, aspectos da biopolítica: definem quem pode e deve ter um filho,
quantos e quando; como a reprodução deve ser um processo controlado e
racional, gerenciado pelas tecnologias médicas contracepção e de
concepção; serviços especializados de aconselhamento genético e
medicina fetal para diagnóstico e intervenções intraútero ou mesmo a
triagem de fetos biologicamente saudáveis (onde a interrupção médica da
gestação é legal).
Na verdade, as duas perspectivas estão presentes na dinâmica do
uso das TRA. De todo modo, pensando a maternidade como norma social,
cabe perguntar, como uma mulher poderia viver sem filhos em sociedades
onde até mesmo técnicas de produção de bebês sob demanda se tornaram
uma realidade factível no campo biomédico?3 Nessa pergunta está clara a
questão do gênero e do papel social da mulher na maternidade, que vai
muito além da gestação e do parto; envolvendo cuidados neonatais, ao
longo da infância até a completa socialização da criança. Seria a
2 BECKER, G.; NACHTIGALL, R. D. Eager for medicalization: the social production of
infertility as a disease. Sociology of Health and Illness v. 14, n. 4, 1992.
3 Corrêa M. C D V A tecnologia a serviço de um sonho. Um estudo sobre a reprodução assistida
no Brasil [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social 1 997; Corrêa M. C
D V. Novas tecnologias reprodutivas: doação de óvulos. O que pode ser novo nesse campo?
[New reproductive technologies: oocyte donation. What could be new in this field?] Cad. Saúde
Pública vol.16 n.3 Rio de Janeiro July/Sept. 2000 pp. 863-870.

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