Internação forçada por uso abusivo de drogas: as mudanças na Lei de drogas estabelecidas pela Lei n. 13.840/2019. Mitos e neblina nas relações entre incapacidade civil e internação forçada

AutorGabriel Schulman
Páginas143-165
143
INTERNAÇÃO FORÇADA POR USO ABUSIVO DE
DROGAS: AS MUDANÇAS NA LEI DE DROGAS
ESTABELECIDAS PELA LEI N. 13.840/2019.
MITOS E NEBLINA NAS RELAÇÕES ENTRE
INCAPACIDADE CIVIL E INTERNAÇÃO FORÇADA
Gabriel Schulman
Knowledge would be fatal. It is the uncer tainty that
charms one. A mist makes things wonderful.1
Eu tinha me convertido num viajante entre esses
mundos, escapando-me por estr adas ocultas e
misteriosas neblina s.2
Sumário: 1. Recorte proposto: entre mitos e ocultações, a incapacidade
civil, internação forçada. 2. Ponto de partida. Indagações e enfrentamentos.
3. Transformações em curso e a chamada “nova lei de internação de
usuários de drogas. 4. Questões em aberto: “Bem no fundo, no fundo, no
fundo, bem lá no fundo, a gente gostaria de ver ossos problemas resolvidos
por decreto. 4.1. A participação da família na internação involuntária. 4.2.
PIA (Plano Individual de Atendimento). 5. Considerações finais. Neblina
e brisa. Desfazer mitos da saúde mental para compreender pressupostos
para as internações.
1. Recorte proposto: entre mitos e ocultações, a incapacidade
civil, internação forçada
Paulo Grossi aponta que a mitologia diz respeito frequentemente à
aceitação acrítica ou mesmo ideologicamente motivada.3 Jean-Plerre
1 WILDE, Oscar. The Picture of Dor ian Grey. McPherson Library, Special Collections, 2011.
Em tradução livre: “A certeza é fatal. O que me encanta é a incerteza. A neblina torna a s coisas
maravilhosas”.
2 COUTO. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Companhia das Letras.
2003. p. 258.
3 GROSSI, Paolo. Mitología jurídica de la Modernidad. Madrid (Espanha): Editorial Trotta,
2007. p. 34
144
Vemant destaca que a decifração do mito não se confunde com um estudo
literário. Trata-se de “destrinchar, na própria composição da fábula, a
arquitetura conceitual envolvida, os grandes quadros de classificação
implicados, as escolhas operadas na decupagem e na codificação do real, a
rede de relações que a narrativa institui, por seus procedimentos narrativos,
entre os diversos elementos que ela faz intervir na corrente do enredo”.4
Aqui não se falará em lendas ou mitos no sentido de parábolas. O presente
artigo procura problematizar-decifrar-discutir-desvelar mitos ou
injustificados reducionismos jurídicos no campo da saúde mental.
Nesse sentido, o presente estudo examina a Lei n. 13.840/2019,
que trata da internação forçada para tratamento por uso de drogas, em
confronto com o regime das incapacidades. Trata-se de texto legal
publicado no Diário Oficial da União, em 06.06.2019, em vigor desde a
mesma data. Sob a forma de pergunta (ou problema de pesquisa), indaga-
se, ainda que de forma inicial: qual o sentido e alcance do texto normativo
em relação às internações forçadas, e em que medida o regime das
incapacidades (não) se presta a dar conta do tema?
São premissas centrais do presente estudo: (i-) a proteção da
pessoa humana como norte; (ii-) a existência de distância(s) e abismo(s)
entre o discurso jurídico e a efetiva utilização de seus institutos, a
demandar de modo imprescindível o cotejo entre o concreto e o normativo,
de modo a enfrentar o que Paolo Grossi designou como “mitologia
jurídica”5, (iii-) além dos mitos jurídicos, é preciso levar em conta o senso
comum e as estigmatizações e mitos na área da saúde, bastante presentes
no campo da saúde mental.
Sob o prisma jurídico, não resta dúvida de que a proteção das
vulnerabilidades, ou melhor, dos vulneráveis6, é de extrema importância.
Todavia, por debaixo da neblina da argumentação jurídica é possível
observar institutos indevidamente associados a tal finalidade protetiva,
4 VEMANT, Jean-Plerre. Mito e religiã o na Gréc ia antiga. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2006. p. 26.
5 GROSSI, Paolo. Mitología jurídica de la Modernidad. Madrid (Espanha): Editorial Trotta,
2007.
6 BARBOZA, Heloisa Helena Gomes. Vulnerabilidade e cuidado: aspectos jurídicos. In:
PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de. (Org.). Cuidado & Vulnerabilidade. São
Paulo: Atlas, 2009. p . 106-118. p. 110. NEVES, Maria do Céu Patrão. Sentidos da
vulnerabilidade: característica, condição, princípio. Revista Brasileira de Bioética, v. 2. n. 02, p.
153-172, 2006. p. 165-166. LUNA, Florencia. Vulnerabilidad: la metáfora de las capas.
Jurispr udencia Argentina, (IV), p. 60-67, 2008.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT