As terras indígenas após a Constituição de 1988

AutorJulio José Araujo Junior
Páginas205-269
Capítulo 4
As terras indígenas após a Constituição de 1988
Eu vejo a liberdade dada aos que se põem
Além da lei, na lista do trabalho escravo
E a anistia concedida aos que destroem
O verde, a vida, sem morrer com um centavo
Com dor eu vejo cenas de horror tão fortes
Tal como eu vejo com amor a fonte linda
E além do monte o pôr-do-sol porque por sorte
Vocês não destruíram o horizonte... Ainda.
(Chico César428)
Como se destacou no capítulo anterior, prevaleceu na Constitui-
ção um modelo que valoriza a autonomia e o respeito aos modos de
vida dos povos indígenas, sem fazer distinção entre estágios de inte-
gração. A negação de direitos como o de usufruto do subsolo, que deu
margem à exploração da mineração, cuja lei reguladora até hoje não
foi aprovada, e a retirada da cláusula da plurietnicidade não chegaram
a descaracterizar a nova paisagem constitucional, composta de ele-
mentos de valorização e abertura à diversidade cultural de grupos por-
tadores de identidades específicas, cujas instituições, entidades e for-
mas de vida devem ser livremente desenvolvidas429. A concepção tu-
telar, que chegou a prevalecer em alguns projetos na Constituinte, foi
superada nas votações finais, permitindo um texto que abre um novo
horizonte para os povos indígenas.
A Constituição conferiu destaque aos índios em vários artigos430,
e realçou a adoção de um modelo de proteções externas para garantir
428 CÉSAR, Francisco. Reis do Agronegócio. Rio de Janeiro: Laboratório Fantasma,
2015. Disponível em: “https://www.letras.mus.br/chico-cesar/reis-do-agronego-
cio/”. Acesso em 25 nov. 2017.
429 Cf. PEREIRA, Deborah Macedo Duprat de Brito. Pareceres Jurídicos: Direitos
dos Povos e Comunidades Tradicionais. Manaus: UEA, 2007, p. 10.
o modo diferenciado de vida desses povos. Consagrando a autodeter-
minação, o artigo 231, por exemplo, reconhece sua organização social,
seus costumes, línguas, crenças e tradições, bem como os direitos ori-
ginários sobre as terras tradicionalmente ocupadas, que são descritas
como aquelas habitadas em caráter permanente, as utilizadas para as
suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos re-
cursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua
reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições
(art. 231, § 1º).
Os direitos territoriais foram assegurados, com a estipulação de
um prazo de 5 anos para a conclusão dos processos demarcatórios (art.
67 do ADCT). A titularidade formal da terra é da União, a ser confe-
rida no processo administrativo de demarcação, a despeito do caráter
declaratório da ocupação tradicional indígena. A previsão do § 3º do
art. 231 sobre aproveitamento de recursos hídricos e minerais, que
representa uma restrição à utilização do território em favor de uma in-
trusão do Estado, depende de lei, que ainda não foi regulamentada431.
Não há previsão sobre a relação dos territórios com os entes federati-
vos, nem qualquer menção à representação política dos indíos.
O art. 215, § 1º revela a preocupação com o direito ao reconheci-
mento e contém a previsão comunitarista de proteção e valorização
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430 Podem ser citados os seguintes dispositivos: art. 20, XI (terras indígenas como
bens da União), art. 22, XIV (competência exclusiva da União para legislar sobre
povos indígenas), art. 49, XVI (competência exclusiva do Congresso Nacional para
autorizar em terras indígenas a exploração e o aproveitamento dos recursos hídricos,
bem como para a pesquisa e lavra das riquezas minerais), art. 109, XI (competência
da Justiça federal em caso de disputa acerca de direitos indígenas), art. 129, V (atri-
buição do Ministério Público de defender judicialmente os direitos e os interesses
das populações indígenas), art. 210, § 2º (garantia às comunidades indígenas da uti-
lização de suas línguas e de seus processos próprios e aprendizagem), art. 215, § 1º
(proteção pela União das manifestações das culturas indígenas), art. 231, art. 232
(capítulo próprio) e art. 67 do ADCT (prazo de cinco anos para a conclusão das
demarcações).
431 Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 1.610/1996, ao qual se
juntaram vários outros projetos, que tratam da mineração em terras indígenas. O
tema gera forte reação dos indígenas, uma vez que, além de representar o interesse
na exploração recursos em seus territórios, o projeto autoriza uma atividade que gera
fortes impactos nas terras, não só econômicos e sociais (desagregação, exploração de
trabalho), mas também no meio ambiente. A bancada ruralista entende que o proje-
to é urgente e prioritário, porém sequer foi cogitada a realização de consultas prévias
para a elaboração do projeto. Veja-se: “http://www.camara.gov.br/proposicoes-
Web/fichadetramitacao?idProposicao=16969”. Acesso em 25 nov. 2017.
das manifestações das culturas indígenas432. O art. 216 também res-
salta a proteção a formas de expressão e modos de criar, fazer e viver.
Na educação, asseguram-se às comunidades a utilização de suas lín-
guas maternas e processos próprios de aprendizagem. Não há previsão
específica sobre a saúde, porém o ordenamento constitucional permi-
te uma atenção diferenciada neste âmbito.
Nos campos institucional e judicial, embora preveja no art. 232
que os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas
para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, a
Constituição fez uma aposta na atuação incisiva do Ministério Públi-
co, que detém a atribuição de defender judicialmente os direitos e in-
teresses dessas populações.
O texto prevê ainda o caráter inalienável, indisponível e impres-
critível da terra indígena, e assegura o usufruto exclusivo das riquezas
do solo, dos rios e dos lagos. A Constituição olha para o presente e
para o futuro, declarando a posse permanente em defesa dos índios e
das terras que ocuparem433, e não possui qualquer previsão que exige
a comprovação de uma realidade factual em momento anterior à sua
promulgação434.
Apesar do vigor do texto normativo, sabe-se que ele não é capaz
de assegurar, sozinho, a efetivação dos direitos que enuncia. Isso fica
ainda mais evidente diante de uma leitura apressada que relegue aos
direitos indígenas apenas o capítulo específico do texto constitucio-
nal, como se tais direitos especiais fossem os únicos aplicáveis a esses
grupos e devessem subordinar-se a institutos consagrados, mediante
Direitos territoriais indígenas 207
432 Para Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento, embora a Constituição
não tenha aderido ao comunitarismo, este dispositivo representa uma abertura a esta
filosofia política, pois promove e protege a cultura nacional. SOUZA NETO, Cláu-
dio Pereira; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e métodos
de trabalho. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 214. Sobre o comunitarismo,
veja-se o capítulo 1.
433 Cf. TOURINHO NETO, Fernando da Costa. Os Direitos Originários dos Ín-
dios sobre as Terras que Ocupam e suas Consequências Jurídicas. In: SANTILLI,
Juliana (coord.). Os direitos indígenas e a Constituição. Porto Alegre: Sérgio Anto-
nio Fabris, 1993, p. 22.
434 Uadi Lâmmego Bulos observa que a terra é fonte de sobrevivência dos índios,
sendo o modo de vida dos índios decisivo para analisar a sua ocupação, a fim de ga-
ranti-la para o futuro, sendo insusectível de alienação ou disponibilidade. BULOS,
Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017,
p. 1667.

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