A interculturalidade como um projeto descolonial

AutorJulio José Araujo Junior
Páginas59-120
Capítulo 2
A interculturalidade como um projeto descolonial
Caminemos Solos
A veces pienso que los indios
esperamos a un hombre
que todo lo pueda,
que todo lo sepa,
que ayude a resolver todos nuestros problemas.
Pero esse hombre que todo lo puede
y que todo lo sabe,
nunca llegará:
porque vive em nosotros,
se encuentra em nosotros,
camina com nosotros,
empieza a despertar: aún duerme.
(Natálio Hernández109)
Como se viu no capítulo anterior, o multiculturalismo enfatiza a
diferença e prevê direitos de grupos que podem ser acomodados em
relação à sociedade majoritária, mas, ao lidar com a realidade do estig-
ma e da inferiorização, questiona pouco as razões desta construção do
“outro”, principalmente em sociedades marcadas pelos impactos da
colonização. Mesmo quando o faz, o lugar de enunciação tem um viés
eurocêntrico, que dispensa pouca atenção à compreensão dos povos
dominados.
As teorias pós-colonial e descolonial preocupam-se justamente
em romper com um olhar hegemônico e desconstruir as visões do “ou-
109 HERNÁNDEZ, Natalio. Caminemos solos. In: MONTEMAYOR, Carlos. La
voz profunda.Antología de la literatura mexicana en lenguas indígenas. México, DF:
Joaquín Moriz Editorial, 2004, p. 171.
tro” que foram consagradas em dicotomias que colocavam os povos
colonizados em posições inferiores. A construção do outro do “orien-
te”, como mostra Edward Said, e a colonialidade do poder, de que tra-
ta Aníbal Quijano, consagraram um discurso de inferiorização desses
povos como forma de justificar a dominação.
Reconhecer este fenômeno é fundamental para repensar as
estigmatizações e os essencialismos, bem como para construir diálo-
gos interculturais que aspirem a uma igualdade de condições com os
povos indígenas. Enfrentar a ferida colonial demanda ir além das polí-
ticas de acomodação e mexer nas cicatrizes de um passado de violên-
cias.
A interculturalidade fortalece mecanismos mais atentos à histori-
cidade dos conflitos sociais e aos processos políticos que embasam a
etnicidade e a afirmação identitária. A sua construção não é um pro-
cesso fácil, mas vem sendo buscada pelo chamado novo constituciona-
lismo latino-americano, que alude às Constituições da Bolívia e do
Equador, e pode ser extraída da atuação de alguns tribunais constitu-
cionais do Sul Global.
2.1. Teoria pós-colonial: pode o indígena, enquanto subalterno, fa-
lar?
A descolonização de diversos países após a segunda guerra mun-
dial provocou o questionamento dos caminhos que cada sociedade po-
deria tomar para superar o passado colonial. Os trabalhos do Grupo
de Estudos Subalternos (Subaltern Studies), do qual participavam au-
tores indianos como Homi Bhabha e Gayatri Chakravorty Spivak, e a
obra do palestino Edward Said formaram o campo da chamada teoria
pós-colonial, que influenciou os debates sobre os efeitos do colonialis-
mo na construção de imagens sobre “o outro” não europeu e na forma-
ção da subjetividade de pessoas subalternas e da identidade em razão
de distinções de raça, cor ou etnia.
A contribuição da teoria pós-colonial mostra que o colonialismo
não é apenas um fenômeno econômico e político, pois possui uma di-
mensão epistemológica, relacionada à constituição de signos e de sím-
bolos. O nome “pós-colonial” não pretende descrever o colonialismo
como um fato do passado, mas sim reconhecer os seus efeitos perma-
nentes com o desejo de superar fenômenos como a hierarquia de lin-
guagens, a criação de oposições (positivas e negativas) e a demarcação
de superioridades de certos grupos sobre outros, com impactos na li-
mitação de direitos.
60 Julio José Araujo Junior
Os autores ligados a esta teoria ressaltam a proliferação de histó-
rias e temporalidades, a erupção da diferença e a construção de narra-
tivas diversas daquelas que constituíram o Estado-nação110. Embora
remeta a momentos históricos específicos de descolonização no sécu-
lo XX – um exemplo é o período pós-independência na Índia –, a teo-
ria pós-colonial é aplicável a todos que vivem a marca da colônia.
Em “Orientalismo”, de 1978, Edward Said discute o impacto da
dominação imperial da Europa sobre as colônias da Ásia e do Oriente
Médio, durante os séculos XIX e XX, e a institucionalização de uma
imagem sobre “o oriente” ou “o oriental”. Trata-se de uma imagem
que não é meramente geográfica. Ela representa formas de vida e pen-
samento capazes de gerar subjetividades concretas que se incorporam
às estruturas objetivas, como leis estatais, códigos de comércio e regu-
lamentos burocráticos.
A obra de Said discute uma forma de produção de pensamento,
favorecida pelo exercício do poder ocidental, que cria uma distinção
ontológica e epistemológica entre o “Oriente” e o “Ocidente”. O pri-
meiro é tratado como um lugar sem história ou desprovido de razão, e
o oriental é visto como um ser irracional, depravado, infantil, diferen-
te. Já o segundo é o lugar do europeu, que é considerado racional, li-
beral, virtuoso, maduro, normal111. Said demonstra que escritores,
poetas, romancistas, filósofos, teóricos políticos e administradores
imperiais aceitaram tal distinção básica como ponto de partida para
teorias, romances e relatos políticos sobre o Oriente, seus povos, cos-
tumes, “mentalidade” e destino, com influências que perduram até
hoje.
A história do campo de estudos chamado “Orientalismo”, criado
em países ocidentais como França e Inglaterra, é a da conversão de
ideias que, a serviço de uma ideologia, surgem como mera repre-
sentação sobre o conhecimento do tema em autoridade sobre ele.
Said observa que um texto que pretende apresentar conhecimento
acerca de um objeto real, sobretudo quando fortalecido pela autorida-
Direitos territoriais indígenas 61
110 Cf. HALL, Stuart. “Cuándo fue lo ‘postcolonial’? Pensando en el limite”.
In:RESTREPO, Eduardo; WALSH, Cathernie; VICH, Víctor (eds.). Sin garantías:
Trayectorais y problemáticas em estudios culturales. Popayán, Colômbia: Envión
editores, 2010, p. 571.
111 SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do ocidente. Tradução
de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007. Kindle Edition. Cap.
1. Pos. 1033.

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