Legislação e interpretação: a visão colonial e colonialista sobre os povos indígenas

AutorJulio José Araujo Junior
Páginas121-203
Capítulo 3
Legislação e interpretação: a visão colonial
e colonialista sobre os povos indígenas
erro de português
Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.
(Oswald de Andrade263)
3.1. Introdução
A distinção entre memória e história, feita por Pierre Nora264, per-
mite compreender as hierarquizações do presente e a perpetuação de
dominações em favor dos vencedores, em contraposição aos despojos a
que se apegam os vencidos. Longe de serem sinônimos, memória e his-
tória são ideias opostas. A memória é sempre carregada por grupos vi-
vos e está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e
do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulne-
rável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de
repentinas revitalizações, ao passo que a história é a reconstrução sem-
pre problemática e incompleta do que não existe mais.
A memória é algo sempre atual, um elo vivido no eterno presente;
a história, uma representação do passado. A memória baseia-se em
lembranças vagas, particulares ou simbólicas, sensível a todas as trans-
263 ANDRADE, Oswald. erro de português. In: _____. Poesias reunidas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017. Kindle Edition. Pos. 2474.
264 NORA, Pierre. Entre memória e história: A problemática dos lugares. Tradução
de Yara Aun Khoury. Proj. História, São Paulo, 10, jul/dez, 1993, p. 07-28.
ferências, cenas, censura ou projeções. Já a história, por ser uma ope-
ração intelectual e laicizante, impõe análise e discurso crítico. A me-
mória provém de um grupo que ela une, logo existem tantas memórias
quantos grupos existem, sendo, por natureza, múltipla e desacelera-
da, coletiva, plural e individualizada. Já a história, ao contrário, é de
todos e ao mesmo tempo não é de ninguém, o que lhe dá uma vocação
para o universal.
As autorrepresentações nacionais constroem uma história oficial,
na qual heróis e episódios marcantes são cultivados e “lugares de me-
mória” são criados. Esses lugares de memória compreendem discur-
sos, ritualização de condutas cívicas, símbolos e valores, e produzem
de maneira colateral os esquecimentos que esse conjunto de narrati-
vas elabora. Os esquecimentos tornam inferiores e insignificantes os
fatos e personagens envolvidos e não possuem monumentalidade nem
grandiosidade265.
Embora a inferiorização tenha sido uma forma permanente de tra-
tamento dos povos indígenas desde a colonização, a construção da his-
tória oficial elaborou algumas percepções que moldaram o imaginário.
João Pacheco de Oliveira menciona a existência de pelo menos quatro
regimes de memória diferenciados que se misturam hoje na com-
preensão das trajetórias e do papel dos indígenas em nossa socieda-
de266. Da visão do paraíso terrenal267, passa-se, em um segundo regi-
me de memória, a uma distinção entre o índio colonial, amistoso, que
trabalha nas fazendas e é recrutado nos aldeamentos, e o índio bravo,
que é inimigo de guerra e merece ser escravizado, fruto das distinções
já produzidas pelo Regimento de Tomé de Souza, de 17 de dezembro
de 1548268.
122 Julio José Araujo Junior
265 OLIVEIRA, João Pacheco de. As mortes do indígena no império do Brasil: o in-
dianismo, a formação da nacionalidade e seus esquecimentos. In: ______. O nasci-
mento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteri-
dades. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2016, p. 75-116.
266 Ibid., p. 7-44.
267 Em seus relatos de viagem, a atenção de Colombo está voltada à falta de vesti-
mentas, o que seria, segundo Todorov, um sinal da falta de propriedades culturais, o
que os associaria ao paraíso bíblico, pois os homens só teriam passado a vestir-se após
a expulsão do paraíso, quando a identidade cultural se inicia. Cf. TODOROV, Tzve-
tan. A conquista da América: a questão do outro. Tradução de Beatriz Perrone Moi.
2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, p. 20. Veja-se também: HOLANDA, Sérgio Buar-
que. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Bra-
sil. 3ª reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
268 O regimento contém orientações distintas quanto aos tratamentos a serem dis-
pensados aos Tupinambás, tidos como inimigos, e aos Tupiniquins, vistos como alia-
É no século XIX, porém, que se constroem as imagens que mais se
enraizaram e persistem até hoje. No Brasil pós-independência, cons-
truiu-se um terceiro regime de memória, no qual a figura do indígena
vai desempenhar um papel importante na narrativa de fundação da
nação, como parte de uma identidade brasileira que difere de Portu-
gal. A literatura vai contribuir para a elaboração de um passado mítico,
em que o indígena ocupa o papel do cavaleiro feudal do romantismo
europeu269. Os indígenas são os legítimos senhores da terra, os pri-
meiros brasileiros, o que remete a uma existência no passado270 e cuja
imagem está reduzida ao exótico e ao repetitivo, em completa falta de
sintonia com a realidade que os grupos étnicos estavam vivenciando
no contexto pós-independência. Na mesma época, o uso retórico de
nomes indígenas para denominar linhagens e títulos era uma prática
constante, apesar da ausência de conexão das elites imperiais com a
cultura e os interesses indígenas reais271. Qualquer alusão a um indí-
Direitos territoriais indígenas 123
dos. Os primeiros devem ter suas aldeias e povoações destrtruídas e uma parte deve
ser morta ou escravizada para dar exemplo e castigo a todos. Já os Tupiniquins, que
são inimigos dos Tupinambás, devem receber auxílio e até terras: “e alguns dos ditos
gentios quiserem ficar na terra da dita Bahia, dar-lhe-eis terra para sua vivenda, de
que sejam contentes, como vos bem parecer”. Disponível em:http://le-
mad.fflch.usp.br/sites/lemad.fflch.usp.br/files/1.3._Regimento_que_levou_Tom
__de_Souza_0.pdf. Acesso em 06 ago. 2017.
269 Cf. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 49ª ed. São Paulo:
Cultrix, 2013, p. 96-97.
270 A recorrência do tema da “morte” dos indígenas simbolizava a inexistência ou
insignificância contemporânea, podendo ser tratada de forma gloriosa, como na poe-
sia de Gonçalves Dias, trágica, conforme “O Guarani”, de José de Alencar, ou vege-
tal, como adaptação simbiótica para a construção de um ser novo, como ocorre em
“Iracema”, de José de Alencar”. Os seguintes trechos do poema “I-Juca Pirama” de-
monstram a perspectiva lírica do nativismo de Gonçalves Dias: “Meu canto de mor-
te, Guerreiros, ouvi: / Sou filho das selvas,/ Nas selvas cresci;/ Guerreiros, descen-
do/ Da tribo tupi. / Da tribo pujante,/ Que agora anda errante/ Por fado inconstan-
te,/ Guerreiros, nasci;/ Sou bravo, sou forte,/
Sou filho do Norte; Meu canto de morte,/ Guerreiros, ouvi”. A própria expressão
“Juca Pirama” significa, em tupi, “aquele que vai morrer”. Sobre a influência do ro-
mantismo indianista na construção da imagem do indígena no Brasil, veja-se: OLI-
VEIRA, João Pacheco de. As mortes do indígena no império do Brasil: O Indianismo,
a formação da Nacionalidade e seus esquecimentos. In: _______. O nascimento do
Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio
de Janeiro: ContraCapa, 2016.
271 A designação de lugares, grupos políticos e periódicos passa a remeter a nomes
indígenas. Como exemplo, pode-se citar a cidade de Niterói, antes Praia Grande,

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