Aspectos históricos, sociais e metodológicos imbricados com o advento do intervencionismo estatal ? legislativo e judiciário ? na órbita privada e com a implementação do estado social de direito

AutorFabiana Rodrigues Barletta
Páginas57-85
CAPÍTULO 3
ASPECTOS HISTÓRICOS,
SOCIAIS E METODOLÓGICOS
IMBRICADOS COM O ADVENTO
DO INTERVENCIONISMO ESTATAL –
LEGISLATIVO E JUDICIÁRIO – NA ÓRBITA
PRIVADA E COM A IMPLEMENTAÇÃO DO
ESTADO SOCIAL DE DIREITO
3.1. DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO SOCIAL
A passagem de um Estado Liberal de Direito “que se autolimitava, possibilitando,
em contrapartida, a primazia da vontade dos indivíduos”,1 para um Estado Social de
Direito, cujo principal escopo se manifesta na preponderância do interesse social e
da justiça social através do intervencionismo do Estado, decorreu da necessidade
de uma ingerência externa. Era necessário proteger aqueles que o Liberalismo, com
suas imanentes ideias de liberdade e igualdade, não foi capaz de tutelar.
Na verdade, o ideal de liberdade - pregado pela Revolução Francesa, positivado
pelo Code e pelos Códigos ocidentais a ele posteriores, que receberam sua nítida
influência - não se sustenta indefinidamente: é impossível falar em liberdade entre
contratantes quando estes são desiguais em substância, principalmente na esfera
econômica.2 É pacífico, hodiernamente, “que a liberdade tem um necessário pres-
suposto, que é o da igualdade dos sujeitos.”3
Correlata à necessidade de um direito desigual, a fim de proteger os economi-
camente mais fracos, dotados de menor potencial de barganha, firma-se, no Estado
Social de Direito, a ideia de que os institutos jurídicos devem ter uma função social.4
1. LÔBO, Paulo Luiz Neto. O contrato - exigências e concepções atuais, p. 85.
2. Consoante GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações, p. 72, verbis: “A igualdade
formal falhou na prática. O contrato passou a ser a arma de exploração do mais fraco pelo mais forte,
obrigando a uma política legislativa de tratamento desigual para restaurar o equilíbrio entre as partes. Foi
preciso compensar a inferioridade econômica dos pobres com uma superioridade jurídica, limitando a
liberdade de contratar e usando a técnica de determinar imperativamente o conteúdo de certos contratos.
Tornou-se assim evidente a necessidade de um direito desigual.”
3. Cf. PRATA, Ana. Op. cit., p. 86.
4. Cf. TEPEDINO, Gustavo. As relações de consumo e a nova teoria contratual. Op. cit., p. 201, verbis: “Tal
ordem de coisas, própria do Estado liberal, altera-se profundamente no Estado intervencionista do século
XX, onde a atenção do legislador desloca para a função social que os institutos privados devem cumprir,
REVISAO CONTRATUAL.indb 39REVISAO CONTRATUAL.indb 39 23/03/2020 19:58:0323/03/2020 19:58:03
REVISÃO CONTRATUAL NO CC E NO CDC • FABIANA RODRIGUES BARLETTA
40
Com tal tutela da atividade negocial pelo Estado, a concepção subjetivista de
negócio jurídico como “declaração de vontade dirigida a produzir efeitos jurídi-
cos”5 tende a se normatizar. Assim, os efeitos do negócio jurídico não decorrem
tanto da vontade declarada, mas, cada vez mais, da vontade da lei que passa a
regulamentá-lo.6
Da mesma forma, a autonomia privada e o contrato têm seu conteúdo inato
modificado pela ideologia de cunho social, deixando de lado o individualismo que
marcou, no século XVIII e ainda no século XIX, as concepções referentes a ambos.
O declínio do dogma da vontade contribui para este resultado.7
Note-se que a passagem do Estado Liberal para o Estado Social é permeada por
inúmeras transformações ideológicas e políticas, que vão influenciar no conteúdo
de institutos tradicionais do Direito Privado e no surgimento de movimentos, como
os de socialização e de descodificação do Direito.
Por isso, pode-se dizer que, conexo à passagem de um Estado Liberal para um
Estado Social de Direito, onde o Estado intervém, promocionalmente, nas relações
interprivadas, situa-se o fenômeno da socialização do Direito Privado.8
Diante deste fenômeno, o conteúdo do Direito Privado modifica-se, não se
atendo à tutela exclusiva do indivíduo e de seus direitos subjetivos. Ocorre, pois, o
contrário: o Direito Privado já não se limita às fronteiras de outrora, que faziam dele
a “esfera de ação do indivíduo.”9
procurando proteger a atingir objetivos sociais bem definidos, atinentes à dignidade da pessoa humana e
à redução das desigualdades culturais e materiais [...]
O legislador despe-se do papel de simples garante de uma ordem jurídica e social marcada pela igualdade
formal (conquista inquestionável da Revolução Francesa), cujos riscos e resultados eram atribuídos à
liberdade individual, para assumir um papel intervencionista, voltado para a consecução de finalidades
sociais previamente estabelecidas e tutelando, para tanto, a atividade negocial.” [grifou-se].
5. Cf. GIORGIANNI, Michele. Op. cit., p. 42, verbis: “São conhecidas as tintas tipicamente subjetivistas as-
sumidas pelos instrumentos dogmáticos construídos pelos juristas, e principalmente pela pandectística
alemã: o direito subjetivo como senhoria da vontade, a propriedade como senhoria sobre a coisa, o negócio
jurídico como declaração de vontade.” No mesmo sentido, ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 49.
6. Cf. GIORGIANNI, Michele. Op. cit., p. 43, verbis: “É no século XIX, no entanto, que se realiza - e não somente
no terreno dogmático - a parábola descendente do ‘direito subjetivo’, que, de senhoria da vontade, se torna
interesse juridicamente protegido, até se chegar - à parte a sua completa negação - a formulações nas quais é
evidente a sua absorção pelo direito objetivo, ou seja, da chamada ‘norma’. O próprio negócio jurídico, no
passado considerado como sendo o domínio da vontade, é permeado por tintas ‘normativistas’. Todo o
fundamento do direito se inverte: o direito, mesmo o privado, promana da vontade do Estado.” [grifou-se].
7. Ibidem, p. 49, verbis: “... O descrito processo voltado a limitar, pelo exterior, o direito subjetivo e a auto-
nomia contratual, foi acompanhado e inserido em um diverso processo, voltado a subestimar o papel
da vontade individual. Este segundo processo, que cronologicamente precedeu o primeiro, conduziu por
sua vez a um progressivo, íntimo ofuscar-se da função da autonomia. No próprio corpo do contrato - que
deveria constituir a expressão mais alta da vontade do sujeito - incessantemente abriram-se, assim, novas
brechas, que intimamente contradizem o papel que à vontade individual era atribuído no sistema jusna-
turalista do Direito Privado.” [grifou-se].
8. Ibidem, p. 35-55, passim.
9. Ibidem, op. loc. cit., passim.
REVISAO CONTRATUAL.indb 40REVISAO CONTRATUAL.indb 40 23/03/2020 19:58:0323/03/2020 19:58:03

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT