Assédio de consumo e vulnerabilidade: a contribuição da Lei 14.181/2021 para a sanção de inexistência da contratação em assédio pelo art. 46 do CDC

AutorClaudia Lima Marques
Páginas409-425
ASSÉDIO DE CONSUMO E VULNERABILIDADE:
A CONTRIBUIÇÃO DA LEI 14.181/2021 PARA A
SANÇÃO DE INEXISTÊNCIA DA CONTRATAÇÃO
EM ASSÉDIO PELO ART. 46 DO CDC
Claudia Lima Marques
Sumário: 1. Introdução – 2. Vulnerabilidade e marketing: do ‘abuso de fraqueza’ dos hipervulneráveis, ao
assédio de consumo em geral e ao novo marketing; 2.1 Proteção do consumidor ingênuo, ‘desfavorecido’,
hipervulnerável e o Art. 39, IV do CDC: o ‘abuso da fraqueza’; 2.2 Assédio como prática comercial que
retira a liberdade de escolha do consumidor: prática abusiva agressiva e o exemplo da Diretiva Europeia
2005/29 – 3. Assédio de consumo como gênero de prática abusiva e agressiva na lei 14.181/2021 e sua
sanção pelo art. 46 Do CDC – 4. Considerações nais.
1. INTRODUÇÃO
Colaborar nesta bela obra sobre vulnerabilidade da colega e amiga Fabiana Barlet-
ta, que tive a honra de orientar em pós-doutorado, é um grande prazer. Cumprimento,
assim, efusivamente todos os organizadores por enfrentarem este importante tema do
novo Direito Privado: a vulnerabilidade.1
Vulnus, vulnerare, em latim, são a origem da expressão vulnerabilidade e signicam
ferida, ferir.2 Como costumo comentar, a palavra ‘vulnerabilidade’ sequer aparece no
Código Civil de 2002, mas está presente em muitos microssistemas, como o Código de
Defesa do Consumidor (CDC), o Estatuto do Idoso, Estatuto da Criança e Adolescente
e daí repercute, em diálogo3 das fontes, para todo o sistema. A Lei 14.181, de 1 de julho
de 2021 atualizou o CDC para incluir dois capítulos sobre prevenção e tratamento do
superendividamento do consumidor e reforçou a proteção dos vulneráveis introduzindo
a gura da vulnerabilidade agravada (Art. 54-C, IV) e mencionando também, expres-
1. Veja nossos estudos, MARQUES, Claudia Lima. Algumas observações sobre a pessoa no mercado e a proteção
dos vulneráveis no Direito Privado. In: GRUNDMAN, Stefan; MENDES, Gilmar; MARQUES, Claudia Lima;
BALDUS, Christian e MALHEIROS, Manuel. Direito Privado, Constituição e Fronteiras. Encontros da Associação
Luso-Alemã de Juristas no Brasil. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2014. p. 287-331 e a obra MARQUES, Claudia Lima.
MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2014.
2. Assim ensina FIECHTER-BOULVARD, Frédérique. La notion de vulnérabilité et sa consécration par le droit.
In: COHET-CORDEY, Frédérique (Org.). Vulnérabilité et droit: le développement de la vulnérabilité et ses enjeux
en droit. Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 2000. p. 14, nota 5.
3. Sobre diálogo das fontes, veja MARQUES, C. L. Nota sobre o diálogo das fontes no direito do consumidor:
uma homenagem a Draiton Gonzaga de Souza. In: OLIVEIRA, Elton Somensi de; CORDIOLI, Leandro (Org.).
Filosoa e Direito: um Diálogo Necessário para a Justiça. Porto Alegre: Editora Fi, 2018, v. 1 (recurso eletrônico),
p. 83-100.
CLAUDIA LIMA MARqUES
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samente, a proteção dos idosos, analfabetos e doentes, quando menciona o assédio de
consumo para fornecer ‘produto, serviço ou crédito.
Gostaria assim de aproveitar o convite e aprofundar meus estudos já parcialmente
publicados,4 agora com a edição da atualização do CDC pela Lei 14.181/2021, que intro-
duziu no Brasil essa gura do ‘assédio de consumo’. Se já conhecíamos a noção de ‘abuso
de fraqueza’ (mais conhecida pela expressão francesa ‘abus de faiblesse’),5 a expressão
‘assédio de consumo’ deixa clara a agressividade da conduta dos fornecedores de pro-
dutos, serviços e crédito, os quais para venderem e conquistarem clientes, ultrapassam
os limites da boa-fé, pressionam, retiram a autonomia/liberdade de escolha do consu-
midor6 e tiram vantagem das vulnerabilidades dos consumidores, utilizando técnicas
de marketing e os avanços da tecnologia.
Em outras palavras, quero reetir neste artigo sobre a umbilical relação entre vul-
nerabilidade e assédio de consumo, que a atualização do CDC considerou gura geral,
aplicável não somente ao fornecimento de crédito – tema principal da Lei 14.181/2021
– , mas ao fornecimento de qualquer produto ou serviço. Destaque-se que o consumi-
dor é reconhecido como vulnerável por lei, por força do Art. 4, I do Código de Defesa
do Consumidor, que tem origem em discriminação positiva constitucional, uma vez
que a Constituição Federal (CF/1988) impõe ao Estado o dever de promover ‘a defesa
do consumidor’ na forma da lei (Art. 5º, XXXII da CF/1988). O que a atualização do
CDC, através da Lei 14.181/2021 faz é consolidar a noção que existem consumidores
‘duplamente’ vulneráveis ou consumidores mais ‘vulneráveis’ ou com ‘vulnerabilidade
agravada’, dentro deste grupo de consumidores, e traz novas regras para os proteger das
práticas comerciais abusivas, as quais hoje justamente focam nesses grupos, o chamado
‘marketing dirigido.
Como armei,7 a vulnerabilidade é um estado a priori, é o estado daquele que pode
ter um ponto fraco, uma ferida (vulnus),8 aquele que pode ser “ferido” (vulnerare) ou é
vítima facilmente.9 Se dentre os consumidores, existem consumidores com vulnerabi-
lidade agravada, seja pela idade (idosos, jovens mais inexperientes10 e, mesmo, crian-
4. Veja o capítulo de livro sobre o tema, MARQUES, Claudia Lima. A vulnerabilidade dos analfabetos e dos idosos
na sociedade de consumo brasileira: primeiros estudos sobre a gura do assédio de consumo. In: MARQUES,
Claudia Lima; GSELL, Beate. (Org.). Novas tendências do Direito do Consumidor: Rede Alemanha-Brasil de
Pesquisas em Direito do Consumidor. São Paulo: Ed. RT, 2015, p. 46-87.
5. Veja, por todos, BOURRIER, Christoph. La faiblesse d’une partie au contrat. Louvain-la-Neuve: Bruylant, 2003.
6. Veja, defendendo esta tese, nosso estudo publicado na Alemanha, MARQUES, C. L.; MIRAGEM, B. N. B. Auto-
nomia dos vulneráveis no direito privado brasileiro. In: GRUNDMAN, Stefan; BALDUS, Christian; DIAS, Rui;
KIRSTE, Stephan; MARQUES, Claudia Lima; MENDES, Laura; VICENTE, Dário Moura. (Org.). Autonomie
im Recht. Baden-Baden: Nomos, 2016, v. , p. 17-59.
7. MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 9. ed. São Paulo: Ed. RT, 2019, p. 310 e s.
8. LACOUR, Clémence. Vieillesse et vulnerabilité. Marseilles: Presses Universitaires d’Aix Marseille, 2007. p. 28.
9. Veja, por todos: FIECHTER-BOULVARD, Frédérique. La notion de vulnerabilité et sa consécration par le
droit. In: COHET-CORDEY, Frédérique (Org.). Vulnerabilité et droit: le développement de la vulnerabilité et
ses enjeux en droit. Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 2000. p. 16 e ss.
10. RAMSAY, Iain. e alternative consumer credit market and nancial sector: regulatory issues and approaches.
e Canadian Business Law Journal, v. 35, n. 3, p. 328. October 2001.

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