A atividade estatal entre o ontem e o amanhã: reflexões sobre os impactos da inteligência artificial no direito público

AutorFelipe Braga Netto e José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Ocupação do AutorPós-doutor em Direito Civil pela Università di Bologna, Itália (Alma Mater Studiorum)/Doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo ? USP
Páginas449-476
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A ATIVIDADE ESTATAL ENTRE O ONTEM
E O AMANHÃ: REFLEXÕES SOBRE OS
IMPACTOS DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
NO DIREITO PÚBLICO
Felipe Braga Netto
Pós-doutor em Direito Civil pela Università di Bologna, Itália (Alma Mater Studiorum).
Doutor em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-RIO. Mestre em Direito
Civil pela UFPE. Membro do Ministério Público Federal (Procurador da República). As-
sociado fundador e 1 vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Responsabilidade
Civil, 2017-2019). Professor de Direito Civil da PUC-Minas (2002-2007). Professor de
Direito Civil da ESDHC (2003-2021). Professor convidado em cursos de pós-graduação
em Direito Civil e Direito do Consumidor nos últimos 20 anos (FESMPMG; Escolas de
Magistratura diversas etc.). Professor da Escola Superior do Ministério Público da União.
Procurador Regional Eleitoral de Minas Gerais (2010-2012). Publicou artigos em 36
obras coletivas, tendo coordenado 5 delas. Além das obras coletivas publicou 14 livros.
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo – USP. Mestre em Direito
pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Especialista em Direito Digital e
Compliance. Membro do Instituto Avançado de Proteção de Dados – IAPD e do Ins-
tituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Advogado. Professor.
Sumário: 1. Introdução. 2. Os desaos da interpretação jurídica em sociedades plurais e complexas.
3. A responsabilidade civil do Estado e (alguns) de seus passos argumentativos. 4. A atividade estatal
entre o ontem e o amanhã: reexões sobre os impactos dos algoritmos. 5. Direitos fundamentais e
atuação estatal: ângulos atuais de abordagem. 6. Considerações nais. 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Novas tecnologias impõem novas expectativas quanto à atuação do Estado no
século XXI, que deve ser não apenas ef‌iciente, mas ef‌icaz quanto à garantia de direitos
fundamentais na sociedade hipercomplexa que, invariavelmente, passa a ser permeada
pela utilização de algoritmos de Inteligência Artif‌icial para a otimização de resultados e
para a aceleração de processos.
A interpretação jurídica é desaf‌iada nesse ambiente complexo e impõe ref‌lexões
sobre o escopo da dogmática jurídica tradicional, reinterpretada à luz de deveres de
proteção que o Estado assume nesse complexo e plural contexto. Isso representa um
desaf‌io, pois cada vez mais surgirão novos sentidos para institutos tradicionais, como
a responsabilidade civil do Estado, consagrada a partir da adoção da teoria do risco
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administrativo, mas que também precisa ser readaptada e ressignif‌icada na medida em
que novas tecnologias se introjetam nas próprias rotinas administrativas, não alterando
apenas a ef‌iciência administrativa, mas trazendo novos riscos que não se sabe, com ab-
soluta clareza, se podem ser assumidos pelo Estado ou não.
O propósito desse breve ensaio, então, será o de revisitar alguns aspectos funda-
mentais para a compreensão das inf‌luências dos algoritmos sobre a atuação do Estado,
primando pela preservação de direitos fundamentais, embora sabendo que o ritmo da
inovação tecnológica continuará acelerado e cada vez mais desaf‌iador.
Em breves linhas, procurar-se-á extrair algumas conclusões assertivas sobre o locus
que as atividades e rotinas estatais ocuparão nesse novo contexto. Ao f‌inal, algumas
considerações serão apresentadas.
2. OS DESAFIOS DA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA EM SOCIEDADES PLURAIS E
COMPLEXAS
Talvez convenha iniciar, em palavra mais ampla, lembrando que as normas abertas
– que traçam objetivos e f‌ins a serem alcançados – se não são uma característica (ex-
clusiva) do nosso século, pelo menos representam algo que se intensif‌icou fortemente
nele. Cabe ao intérprete densif‌icar materialmente essas normas, através de um processo
racional de argumentação, buscando dimensões objetivas de sentido, à luz dos caminhos
socialmente tidos como razoáveis e proporcionais.
Atualmente a interpretação jurídica ganhou notas de complexidade que inexistiam
nos séculos passados. Não se trata de operação neutra, formal, lastreada unicamente na
subsunção silogística. Tampouco se aceita a ideia de que a ordem jurídica traz apenas
uma resposta correta para cada problema1. Ainda há, é certo, quem defenda essa posição,
mas trata-se de corrente hoje minoritária. A norma é o ponto de partida da interpretação2,
1. A questão, porém, é polêmica. Em crítica teoricamente sof‌isticada a essa visão, argumenta-se que “a despeito da
dimensão inevitavelmente ‘criativa’ da interpretação constitucional – dimensão presente em qualquer processo
hermenêutico, o que, por isso mesmo, não coloca risco, segundo Habermas, a lógica da separação dos poderes, –
as Cortes Supremas, ainda que recorram a argumentos que ultrapassem o direito escrito, devem proferir ‘decisões
corretas’ e não se envolver na tarefa de ‘criação do direito’, a partir de valores ‘preferencialmente aceitos’. As decisões
de princípio proferidas pelas Cortes Constitucionais não podem ser equiparadas, segundo Habermas, a emissões
de juízos que ‘ponderam objetivos, valores e bens coletivos’, pois, dado que normas e princípios constitucionais, em
virtude do seu sentido deontológico de validade, são vinculantes e não especialmente preferidos, a interpretação
constitucional deve decidir ‘qual pretensão e qual conduta são corretas em um dado conf‌lito e não como equilibrar
interesses ou relacionar valores’“. CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva. Elementos da
Filosof‌ia Constitucional Contemporânea. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 212-213.
2. Cabe lembrar, a propósito, à luz das lições de Humberto Ávila, que a “matéria bruta utilizada pelo intérprete – o texto
normativo ou dispositivo – constitui uma mera possibilidade de Direito. A transformação dos textos normativos
em normas jurídicas depende da construção de conteúdos de sentido pelo próprio intérprete”. ÁVILA, Humberto.
Teoria dos princípios: da def‌inição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 16. Aliás, a
ideia não é nova, sendo, na verdade, muito antiga – obviamente sob outros pressupostos teóricos e sociais. Paulo
já proclamava que “não é da regra que promana o direito, senão com base no direito, existente por si mesmo, que
a regra é elaborada”. Non ut ex regula jus sumatur, sed ex jure, quod est, regula f‌iat (De Diversis Regulis Juris Antiqui,
reg. 1 (tradução de Limongi França). Brocardos Jurídicos – As Regras de Justitiano. São Paulo: RT, 1969, p. 48).
Sintomaticamente, os civilistas são conhecidos por simbolizar, tradicionalmente, o conservadorismo jurídico.
Pierre Bourdieu, por exemplo, enxerga nos privatistas o “culto do texto, o primado da doutrina e da exegese, quer
dizer, ao mesmo tempo da teoria e do passado” BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando
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