Autonomia e gradação da curatela à luz das funções psíquicas

AutorFernanda Tartuce e Simone Tassinari.
Ocupação do AutorDoutora e Mestra em Processo Civil pela USP. Professora no programa de Mestrado e Doutorado da FADISP (Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo). Professora e Coordenadora de Processo Civil na EPD (Escola Paulista de Direito). Advogada, mediadora e autora de publicações jurídicas. / Doutora e Mestra em Direito pela PUC-RS. Professora no...
Páginas153-170
AUTONOMIA E GRADAÇÃO DA CURATELA
À LUZ DAS FUNÇÕES PSÍQUICAS1
Fernanda Tartuce
Doutora e Mestra em Processo Civil pela USP. Professora no programa de Mestrado
e Doutorado da FADISP (Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo). Professora
e Coordenadora de Processo Civil na EPD (Escola Paulista de Direito). Advogada,
mediadora e autora de publicações jurídicas.
Simone Tassinari
Doutora e Mestra em Direito pela PUC-RS. Professora no programa de Mestrado e
Doutorado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Advogada, mediadora,
autora de livros e publicações jurídicas.
Sumário: 1. Relevância do tema – 2. A proteção da saúde das pessoas com deciência como
responsabilidade de todos – 3. Funções psíquicas e autonomia para declaração: a necessidade de
graduar a curatela; 3.1 Da passagem da teoria da vontade à teoria da declaração e necessidade
de autonomia privada para tanto; 3.2 As funções psíquicas, as questões de saúde fundamentais
e os impedimentos de manifestação de vontade a partir de cada limitação individual – 4. Notas
conclusivas – 5. Referências.
1. RELEVÂNCIA DO TEMA
Ao ref‌letirmos sobre os temas “def‌iciência” e “desaf‌ios para uma sociedade
inclusiva”, a situação da curatela ganha destaque.
A mudança legislativa operada pela Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015)
em dispositivos consagrados sobre capacidade de fato no Código Civil brasileiro
deixou algumas lacunas. O espaço mais signif‌icativo a ser preenchido por doutrina
e jurisprudência é o que diz respeito à dicotomia entre realidade e lei.
Embora a disciplina legal determine que todas as pessoas2, com def‌iciência ou
não, têm capacidade e que as que não podem exprimir vontade são apenas relativa-
mente incapazes para prática de atos na vida civil, não é esta a realidade da vida: em
situações de coma, doenças mentais graves e def‌iciências intelectuais há impossibi-
lidade de exprimir vontade, e por mais que se busque artif‌icializar desejando relativa
capacidade, por vezes esta não se conf‌igura.
Em certos momentos pode ser viável reconhecer que não há vontade qualquer
para a prática de alguns atos, mas suf‌iciência de vontade para a prática de outros.
1. Artigo publicado no Vulnerabilidade e sua compreensão no Direito brasileiro, organizado por Marcos Ehrhardt
Jr e Fabiola Lobo (Indaiatuba: Foco, 2021, v. 1, p. 245-260).
2. Salvo os menores de 16 anos.
EBOOK DEFICIENCIA E OS DESAFIOS PARA UMA SOCIEDADE INCLUSIVA_VOL 01.indb 153EBOOK DEFICIENCIA E OS DESAFIOS PARA UMA SOCIEDADE INCLUSIVA_VOL 01.indb 153 24/05/2022 16:42:2924/05/2022 16:42:29
FERNANDA TARTUCE E SIMONE TASSINARI
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Há uma variação muito signif‌icativa nos desaf‌ios de mentes e interações humanas.
Uma coisa se sabe: as ciências da saúde apontam áreas em que os desaf‌ios se impõem
com mais força. Neste sentido, a proposta de: a) fazer com que a norma jurídica que
pretendeu incluir as pessoas com def‌iciência não seja ela mesma responsável por
colocá-las em situação de vulnerabilidade; b) superar uma correlação anterior que
se fazia entre “interdição por absoluta incapacidade a ser exercida por representação
de curador” e “interdição por incapacidade relativa a ser exercida por assistência de
curador”; c) reconhecer que há possibilidades de funções psíquicas signif‌icativas a
impedir absolutamente a manifestação de vontade em certa área específ‌ica, gerando
inexistência, ou nulidade absoluta do ato, restando hígida a possibilidade de manifes-
tação em outro campo, devendo o ato/negócio ser considerado perfeito.
É extremamente relevante reconhecer que o paradigma contemporâneo dos
negócios jurídicos se coloca a partir da declaração, sendo extremamente inf‌luen-
ciado pelas posições científ‌icas desenvolvidas por Emílio Betti. Em suma, supe-
rou-se a noção de uma manifestação de vontade psíquica no sentido de constituir
o ato ou negócio jurídico. Em um primeiro momento pode parecer que pessoas
com impedimento de vontade, poderiam então, declarar perante a sociedade, e a
avaliação sobre a perfeição do ato deveria ser avaliada posteriormente. Entretanto,
relendo a teoria de Betti, verif‌ica-se que a autonomia pessoal é pressuposto para
a declaração. Então resta assentada, inclusive na teoria de Betti, que se não há su-
f‌iciência de autodeterminação, não há possibilidade de conceber uma declaração
juridicamente existente.
Com este reconhecimento, faz-se necessário revisar o instituto da curatela,
modulando, no mesmo processo, capacidade plena, incapacidade absoluta e incapa-
cidade relativa para atos específ‌icos a f‌im de viabilizar que se reconheça a possibili-
dade de, a partir da pessoa concreta, decretar a curatela a partir de suas necessidades
e vulnerabilidades. Entende-se, portanto, que o estudo das funções psíquicas oferece
condições de compreender as dimensões da vida humana em sua complexidade,
podendo-se perceber que para gerar efetividade à tutela legal há de se reconhecer a
vida concreta, em suas dimensões.
2. A PROTEÇÃO DA SAÚDE DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA COMO
RESPONSABILIDADE DE TODOS
A saúde compreende “o estado de completo bem-estar físico, mental e social”,
não se limitando à mera ausência de doenças3. Por constituir premissa essencial
3. A def‌inição consta no preâmbulo da Constituição da Organização Mundial de Saúde, que af‌irma na sequ-
ência: “Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de
todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social.
Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mun-
dial-da-Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html. Acesso em: 25 mar.
2020.
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