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Nas primeiras décadas do período republicano continuou a ocor-
rer a redução da população indígena existente no país, em comparação
com aquela existente no início do Império. Assim, de cerca de 360 mil
possivelmente existentes por volta de 1825, ter-se-ia chegado, algumas
décadas após o início da fase republicana, a cerca de 200 mil em 1940139.
A Constituição de 1891 repetiu o exemplo de sua antecessora
de ausência de previsão acerca dos direitos indígenas em seu texto140.
139 AZEVEDO, Marta Maria. Diagnóstico da população indígena no Brasil,
cit., p. 19.
140 SOUZA FILHO, O renascer dos povos indígenas para o direito, cit., p. 88.
Sobre a preocupação com a questão indígena no início da República, apon-
ta Ligia Osório Silva: “Esse desinteresse da República pela sorte dos índios
pode ser notado desde a fase de reorganização política e social do Estado. Na
Constituinte de 1891, o Apostolado Positivista do Brasil foi a única voz que se
levantou em defesa das populações indígenas, propondo o reconhecimento
dos ‘Estados Brasileiros Americanos’, nos quais os índios seriam amparados
pela proteção do governo federal e plenamente respeitados na posse de seus
territórios” (SILVA, Ligia Osorio. Terras devolutas e latifúndio, cit., p. 324).
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POVOS INDÍGENAS E DIREITOS TERRITORIAIS
Manteve a lógica de negação da realidade de parcela considerável da
população em nível constitucional – prática que somente foi alterada
com a Constituição de 1934141.
A adoção no Brasil do modelo republicano se deu de forma
artificial, com a absorção de valores em voga na Europa e nos Esta-
dos Unidos, mas que pouco se relacionava com a realidade local ou
com as reivindicações da sociedade. Nesse sentido se deu, por exem-
plo, com a recepção do positivismo – teoria com grande influência
em importantes círculos do meio militar, que exerceu papel central
na queda do Império e no surgimento da República142.
Acerca do artificialismo dos valores vigentes no novo regime,
afirmou Euclides da Cunha que “somos o único caso histórico de
uma nacionalidade feita por uma teoria política. Vimos, de um sal-
to, da homogeneidade da colônia para o regime constitucional: dos
alvarás para as leis”143. A transição de regime escancarou, ademais, a
ausência da participação do povo144.
141 MENDES JR., op. cit., p. 67.
142 “[...] ao entrarmos de improviso na órbita dos nossos destinos, fizemo-lo
com um único equilíbrio possível naquela quadra: o equilíbrio dinâmi-
co entre as aspirações populares e as tradições dinásticas. Somente estas,
mais tarde, permitiriam que entre os ‘Exaltados’, utopistas avantajando-se
demasiado para o futuro até entestarem com a República prematura, e os
‘Revolucionários’, absolutistas em recuos excessivos para o passado, re-
pontasse o influxo conservador dos ‘Moderados’, ou liberais-monarquistas
da Regência, o que equivalia à conciliação entre o Progresso e a Ordem,
ainda não formulada em axioma pelo mais robusto pensador do sécu-
lo” (CUNHA, Euclides da. À margem da história. 3. ed. Porto: Livraria
Chandron, de Lelo & Irmão Ltda. editores, 1922. Disponível em: <http://
www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ub000011.pdf, p. 237).
143 Ibid., p. 237. No mesmo sentido, Bosi, para quem: “O elitismo se tornaria,
assim, um componente inarredável do processo ideológico latino-americano
na medida em que as ideias gerais da evolução, progresso e civilização não se
casavam com os valores da democracia social e cultural” (BOSI, op. cit., p. 59).
144 CARVALHO, José Murilo de. Pecado original da república: debates, per-
sonagens e eventos para compreender o Brasil. Rio de Janeiro: Bazar do
Tempo, 2017, p. 56.
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Acresça-se que a Constituição de 1891 transferiu aos estados
a propriedade das terras devolutas, antes em poder do governo cen-
tral145, e que, na prática, tal transferência redundou em um avanço
de poderosos grupos regionais sobre terras anteriormente ocupadas
por indígenas. Dentro dessas condições é que Ligia Osorio Silva afir-
ma que “num certo sentido, a República retrocedera em relação ao
Império na questão dos indígenas”146.
O período republicano teve início com a busca de maior in-
teriorização do Estado e, nessa perspectiva, o indígena representa-
va importante problema a ser levado em conta. Por tal razão, houve
nesse período uma passividade legislativa nas primeiras décadas que
dificultou a garantia de uma maior proteção em relação aos direi-
tos indígenas. Importante observar que ao longo da República vai
se consolidando uma mudança de interesse dos poderes públicos
em relação ao indígena. Como aponta a historiadora Lilia Schwarcz,
“[...] em inícios do século XX a questão indígena ia aos poucos se
desvinculando do tema da mão de obra, para se configurar como um
problema de posse de terra”147.
No intuito de intermediar a relação entre, de um lado, o avan-
ço da sociedade nacional e, de outro, a proteção das áreas de ocupa-
ção indígena foram criados, posteriormente, institutos que tiveram
atuação com impacto direto sobre a situação dos povos indígenas 148.
145 CUNHA, Índios no Brasil, cit., p. 81.
146 SILVA, Ligia Osorio. Terras devolutas e latifúndio, cit., p. 323. Cumpre
advertir, contudo, que, antes disso, já no início da República, o Governo
Provisório recém-formado expede o Decreto 7, de 20 de novembro de 1889,
que, em seu art. 2º, § 12, transfere, de forma precária aos recém-criados
estados as atribuições de realizar as políticas de catequese e civilização dos
indígenas, bem como o estabelecimento de colônias.
147 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019, p. 168.
148 “Entre os anos de 1907 e 1913, no traçado da linha telegráfica aberta pela
Comissão Rondon, aproximadamente 18 tribos se extinguiram” (DAVIS;
MENGET, Povos primitivos e ideologias civilizadas no Brasil, cit., p.
58). Sobre a existência de outros órgãos estatais relevantes na República: “A
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