Caminhos alternativos para a proteção dos vulneráveis: uma análise a partir dos vícios do consentimento

AutorFlávio Henrique Silva Ferreira
Páginas493-514
CAMINHOS ALTERNATIVOS PARA
A PROTEÇÃO DOS VULNERÁVEIS:
UMA ANÁLISE A PARTIR DOS VÍCIOS
DO CONSENTIMENTO
Flávio Henrique Silva Ferreira
Sumário: 1. Introdução – 2. Uma proposta de classicação dos vícios do consentimento – 3. Países de
tradição romanista: o equivalente moderno do instituto da lesão nos princípios do direito contratual
europeu (PECL) – 4. Como é feita a prova do erro, do medo ou da imprudência – 5. O direito anglo-a-
mericano: unconscionability e undue inuence 6. Pontos de conexão (1): o temor reverencial no direito
comum europeu anterior às codicações e a inuência indevida – 7. Pontos de conexão (2): normas
especícas do direito brasileiro e a inuência indevida – 8. Pontos de conexão (3): inuência indevida,
unconscionability e lesão – 9. Explicações cientícas para as escolhas imprudentes realizadas por pessoas
em situação de vulnerabilidade – 10. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Existem vários institutos jurídicos capazes de proteger os mais vulneráveis contra
prejuízos resultantes da realização de negócios jurídicos e contratos. O foco de nossa
análise serão aqueles institutos que permitem o desfazimento da relação negocial/
contratual com fundamento nos vícios do consentimento do declarante vulnerável. O
declarante pode tomar uma decisão desastrosa inuenciado por uma falsa representação
da realidade (erro); por receio de sofrer consequências negativas caso não forneça o seu
consentimento (medo); ou por ser incapaz de reetir adequadamente sobre o custo/
benefício de suas escolhas, tomando uma decisão insensata (imprudência). Esses “ví-
cios do consentimento” podem ter origem espontânea, em virtude das circunstâncias
do caso, ou podem ter origem na inuência maléca exercida por outra pessoa sobre
o declarante vulnerável. Com base em uma análise histórica e comparativa, o presente
trabalho irá mostrar quais foram as soluções encontradas pelos ordenamentos jurídicos
para proteger o declarante vulnerável. Apesar das diferentes técnicas jurídicas, identi-
caremos algumas tendências e convergências entre os ordenamentos. Além de explicar
como diversos institutos (provenientes dos ordenamentos de tradição romanista e do
direito anglo-americano) protegem o declarante, conectando tais institutos aos vícios
do consentimento a serem combatidos, também iremos fornecer explicações cientícas
para as escolhas insensatas, através da descrição de experimentos psicológicos enge-
nhosos. Ao nal do trabalho, teceremos algumas conclusões a respeito dos caminhos
alternativos para a proteção dos vulneráveis, com a realização de algumas sugestões de
caráter metodológico.
FLÁVIO hENRIqUE SILVA FERREIRA
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O trabalho é estruturado da seguinte maneira. Inicialmente, realizaremos uma
proposta de classicação dos vícios do consentimento, distinguindo tal noção dos
“institutos” ou “regimes jurídicos” que fornecem proteção ao declarante. É um equívoco
misturar as duas coisas, como frequentemente acontece na literatura jurídica brasileira
e estrangeira. Por exemplo, os institutos ou regimes que o código civil brasileiro, em sua
parte geral, chama de “erro”, “dolo” e “coação” não são os vícios do consentimento em si
mesmos, mas apenas alguns dos regimes jurídicos que conferem proteção ao declarante
em virtude de uma declaração viciada. Essa é uma questão sutil, mas de grande relevância.
Existem regimes protetivos que não se encontram na parte geral do código civil, dentro
da regulamentação dos negócios jurídicos, mas se encontram em outros locais dentro e
fora do código civil. A análise feita nesta parte do trabalho servirá como pano de fundo
para os pontos abordados nas partes subsequentes, pois fornecerá um quadro compa-
rativo universal dos vícios do consentimento, aplicável a quaisquer ordenamentos. Os
institutos ou regimes abordados nas demais partes do trabalho podem ser entendidos
como as soluções encontradas pelos vários ordenamentos para a proteção do declarante
em virtude dos vícios do consentimento aqui identicados.
Em seguida, faremos uma análise sucinta da evolução do instituto da lesão nos
ordenamentos de tradição romanista, culminando num dispositivo dos Princípios do
Direito Contratual Europeu (PECL) que lida com as denominadas “vantagens excessi-
vas” obtidas por alguém às custas do declarante. Identicaremos a tendência por detrás
desta evolução, que é a elaboração de uma norma geral, de caráter subsidiário, capaz de
proteger o declarante que, inuenciado por outrem, emitiu uma declaração viciada, se
vinculando a um negócio que lhe é prejudicial. Tal norma geral e abstrata teria como
principal função evitar quaisquer brechas deixadas por normas mais especícas. Ela
funcionaria como um “guarda-chuvas” capaz de acolher aquelas situações em que o
declarante necessita de proteção, mas tal proteção seria dicilmente concedida com base
em normas mais precisas, por falta de algum requisito especíco para a sua aplicação.
Depois disso, abordaremos os equivalentes funcionais utilizados no direito anglo-ame-
ricano: os institutos da unconscionability e da undue inuence. Ocorreu, no contexto do
direito anglo-americano, uma generalização semelhante à ocorrida no direito comum
europeu com o instituto da lesão. Mostraremos, a seguir, alguns pontos de contato e
desenvolvimentos paralelos nas duas tradições jurídicas, que culminaram em normas
parcialmente divergentes. Enquanto no direito anglo-americano a inuência indevida se
consolidou como um instituto relativamente abrangente; nos ordenamentos de tradição
romanista a proteção do declarante nas situações de temor reverencial foi abortada, não
tendo vingado de forma generalizada. A ausência de normas gerais, porém, não impediu
a elaboração, nos ordenamentos de tradição romanista, de diversas normas especícas
que funcionam como equivalentes funcionais do instituto da inuência indevida. Em
seguida, com base na literatura médica e nas ciências comportamentais, iremos expor
alguns experimentos psicológicos que ilustram o funcionamento do cérebro humano.
O objetivo é identicar os mecanismos psicológicos que levam as pessoas vulneráveis
a fazerem escolhas imprudentes. Embora tais escolhas imprudentes, no contexto da

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