Capítulo XI - Técnica de Sentenciar

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Manoel Antonio Teixeira Filho
Capítulo XI
Técnica de Sentenciar
Comentário
O momento em que o juiz se recolhe para redigir a sentença traduz o acontecimento
mais notável do seu ofício. A própria sentença, como já foi dito, constitui o evento mais
importante do processo, o seu ponto de culminância. Acompanhado, apenas, pelas convic-
ções e incertezas que, num entrechoque perverso, costumam tomar-lhe de assalto o espírito
nessas ocasiões, o juiz sente pesar em seus ombros, mais do que nunca, a responsabilidade
do cargo, pois agora terá de decidir, com equilíbrio e segurança, sobre o direito em torno do
qual as partes se digladiaram intensamente. Pode-se armar, por isso, que o ato de sentenciar
traduz o exercício de uma solidão responsável.
Esse momento, entretanto, é muito mais cruciante — por ser crucial — para as partes,
por saberem que, após uma lide extenuante, que lhes consumiu tempo e dinheiro, a sen-
tença poderá ser a causa de sua ruína ou de sua fortuna, de seu regozijo ou de sua tragédia
pessoal. Compreende-se, por isso, a expectativa e, não raro, a ansiedade que dominam os
litigantes nesse espaço de tempo que antecede à leitura da sentença. Compreende-se, por
esse mesmo motivo, a linguagem cáustica e deselegante com que, quase sempre, se dirigem
ao pronunciamento jurisdicional, quando dele recorrem. Poucos sentimentos revelam-se tão
incômodos e angustiantes como o de injustiça. Só o homem é capaz de ter consciência do
que é justo e do que é injusto, conquanto vá, nesse juízo, no mais das vezes, uma considerável
carga de subjetividade.
Não é bastante, por isso, que o juiz conheça o Direito; é essencial que possua sensibilidade
para perceber o quanto a sentença representa para as partes. Benditos são os magistrados
que, mesmo curvados pelo peso dos anos, não transformam o ofício de julgar em algo
mecânico, não produzem sentenças em profusão apenas para melhorar o seu desempenho
no quadro das estatísticas judiciárias. Julgar é sentir; e sentir signica ter sensibilidade. A
este respeito, parece-nos oportuno recordar um trecho do livro “O Último Dia de um Conde-
nado à Morte”, de Víctor Hugo. Este livro foi uma espécie de libelo contra a pena de morte,
que vigorava na França. A personagem principal, uma pessoa humilde que fora condenada
à morte, encontrava-se na prisão, aguardando o momento de ser conduzida ao cadafalso.
Ninguém se comunicava com ele; o carcereiro se limitava a trazer-lhe a ração do dia. Nesse
momento, em que sua mente estava convulsa, tomada por um torvelinho de pensamentos
angustiantes, ele vê ingressar em sua cela o capelão do presídio. Uma rajada de alívio se apossa
de sua alma — não porque imaginasse que o velho capelão iria trazer-lhe a notícia de um
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indulto concedido pelo rei, mas porque poderia, enm, conversar com alguém, narrar-lhe
a sua angústia, revelar-lhe os últimos pensamentos. Todavia, o capelão mal o ta nos olhos,
limita-se a dirigir-lhe algumas palavras em latim, e se retira. Um profundo sentimento de
frustração toma conta do prisioneiro. Conheçamos as palavras de desolação desse miserável,
lavradas pela pena genial de Victor Hugo:
“Este padre é o titular da prisão. Sua prossão é consolar e exortar, vive disso.
Os forçados (pessoas condenadas às galés), os pacientes, são da alçada de sua
eloquência. Confessa-os, assiste-os, porque é a função dele. Envelheceu levando
os homens para a morte. Faz tempo que ele está acostumado ao que dá calafrios
nos outros; seu cabelo, bem encanecido, já não ca mais em pé; os trabalhados
forçados e o cadafalso fazem parte do cotidiano para ele. Ficou insensível. Ele pro-
vavelmente tem um caderninho, em que anota, tal página, os forçados, tal página
os condenados. Avisam-no de véspera que haverá alguém para ser consolado a
tal hora; pergunta o que é, forçado ou supliciado? Passa mais uma vista em tal
página e se dirige para cá. (...)
Oh! Que mandem buscar, em vez disso, algum jovem vigário, algum velho padre,
ao acaso, na primeira paróquia; que o peguem juntinho da lareira, lendo seu livro,
sem suspeitar de nada, e que lhe digam: há um homem que vai morrer e cabe
ao senhor consolá-lo. O senhor tem que estar presente quando atarem as mãos
dele, quando cortarem o cabelo dele; o senhor terá que subir com ele na charrete
com seu crucixo, para esconder dele o carrasco; terá que sacolejar com ele nos
paralelepípedos até a Grève; terá que atravessar com ele a horrível multidão
sedenta de sangue; terá que beijá-lo no pé do cadafalso, e car até a cabeça dele
estar aqui e o corpo lá.
Que me tragam, então, todo palpitante, todo arrepiado da cabeça aos pés; que
me joguem nos braços dele, aos pés dele; e ele chorará e nós choraremos, e será
eloquente e eu estarei consolado, e meu coração desaguará no dele, e ele tomará
minha alma e eu tomarei o Deus dele.
Mas aquele bom velho, o que é para mim? O que sou para ele? Um indivíduo da
espécie infeliz, uma sombra como já viu tantas, uma unidade para acrescentar
ao número das execuções”.
Deixemos a literatura de lado.
Não nos move, nestas páginas que estamos a escrever, o propósito de empreender um
discurso a respeito da justiça ou da injustiça das decisões judiciais. Nossos comentários só
pretenderam ressaltar os contornos dramáticos desse momento de extrema signicação para
a vida das partes, em que o juiz se prepara para emitir a sentença de mérito. Esse momento,
enm, em que ele terá, não só, de oferecer uma resposta jurisdicional às pretensões in iudicio
deducta, senão que justicar (conquanto talvez não saiba que esteja a fazê-lo) o veto estatal
à possibilidade de os indivíduos solucionarem, com os meios de que disponham, o conito
de interesses em que se encontram envolvidos.
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Esse elemento político das sentenças não pode ser ignorado pelo juiz, pois se o Estado
tornou defesa a autotutela de direitos, como providência necessária para assegurar a esta-
bilidade das relações sociais e jurídicas, é absolutamente indispensável que o magistrado,
substituindo as partes numa atividade que estas desejariam realizar pessoalmente, com vistas
a obter ou a preservar um bem ou uma utilidade da vida, componha de maneira adequada o
conito de interesses. Compor adequadamente signica, em termos gerais, fazer incidir, com
precisão, no caso concreto, as normas legais pertinentes, inclusive, as de natureza processual,
sem menosprezar os princípios de que se nutre o processo do trabalho.
É oportuno lembrar que o juiz, como reitor do processo, não pode converter-se em
spota. A sua atuação está subordinada à lei que, dentre outros deveres, impõe-lhe o de
ministrar um tratamento rigorosamente isonômico às partes, máxime no processo cognitivo
(CPC, art. 139, I). A ampla liberdade, que o processo do trabalho lhe atribui (CLT, art. 765),
não deve constituir pretexto para a quebra desse dever.
Concentremos, portanto, a partir de agora, nossa atenção na gura do magistrado, não
mais para dizer da importância de sua atuação como sujeito desinteressado do processo, mas
do procedimento técnico que deve adotar quando tiver, diante de si, os autos, para redigir a
sentença. Tenhamos, assim, uma visão pragmática desse momento.
Podemos armar que, em regra, a fase em que o juiz se prepara para emitir a sentença
é constituída por dois estádios distintos, logicamente preordenados, a que denominamos de:
a) vericação dos fatos da causa e b) ordenação das matérias. Vencida essa fase preparativa,
vem a decisória, de tal arte que podemos assim esquematizar o que dissemos:
I – Fase preparativa:
a) vericação dos fatos da causa
b) ordenação das matérias
providências saneadoras
preliminares
prejudiciais
mérito
II – Fase decisória:
apreciação das matérias
providências saneadoras
preliminares
prejudiciais
mérito
Esmiucemos essas fases.
Fase preparativa
a) Vericação dos fatos da causa
A primeira atitude que deve tomar o juiz, quando tiver diante de si os autos, para deci-
dir, é cienticar-se dos fatos da causa. Essa observação pode parecer curiosa, mas a verdade
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