A cláusula de ensuing loss nos seguros all risks

AutorJudith Martins-Costa e Rafael Branco Xavier
Páginas13-44
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30 .
A CL ÁU SU LA DE EN S U I N G L O S S N OS
SE GU RO S A L L R I S K S
Judith Martins-Costa e
Rafael Branco Xavier
INTRODUÇÃO
Imagine-se um pêndulo e se pense na máxima basilar aos riscos: res perit domino.
A coisa perece para quem é o seu proprietário. Um sujeito que não firme con-
trato de seguro está à deriva em relação às vicissitudes que possam ocorrer em seu
patrimônio. Se estiver como figurante de relação contratual, o pêndulo balançará
em virtude das vicissitudes – e penderá – sobre uma das pontas, aquela indi-
cada pela regra geral dos riscos. Porém, se o sujeito tivesse celebrado contrato
de seguro all risks, a máxima seria outra: “res perit seguradora. Os riscos estariam
cobertos na integralidade e quem os suportaria seria a parte seguradora. Por essa
modalidade de apólice, todos os efeitos dos sinistros concernentes ao objeto da
cobertura estão garantidos.
Não há paradoxo em afirmar, porém, ser equivocada a asserção segundo a qual
no seguro “todos os riscos”, todos os riscos estão segurados”. A razão é que poderá
haver (e comumente há) cláusulas de exclusão da garantia pelas quais alguns dos ris-
cos não estão sob seguro. No limite, mesmo as cláusulas de descrição do interesse
segurado podem ser vistas como de exclusão: assegura-se os riscos apenas àque-
les interesses contratualmente indicados. A cláusula de exclusão deixa o segurado
sujeito às vicissitudes de sua atuação no locus do que for especificamente afastado.
Se no contrato de seguro all risks forem pactuadas cláusulas de exclusão, o pêndulo
ainda pende para o lado da regra res perit seguradora, mas de modo já mais pró-
ximo do centro.
Se as exclusões se avolumarem – seja por um aumento excessivo no número
de hipóteses arroladas, seja pela previsão de hipóteses demasiadamente genéricas
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– o pêndulo tende a retornar para a posição inicial. O interesse por parte do segu-
rado se esvazia: Por que o sujeito ainda buscaria celebrar o contrato se não poderá
gozar da proteção diante de eventos futuros? Na feliz metáfora de Ernesto Tzirulnik,
seguros sem proteção são guarda-chuvas permeáveis – não servem para nada.1 Se as
exceções em relação à regra geral de cobertura são abrangentes, o interesse segurado
é de tal maneira diminuído que afasta a própria função do contrato de seguro.
Uma forma de buscar maior equilíbrio no pêndulo e assegurar a função precí-
pua do contrato se dá pela criação de exceções às exclusões – ou, do ponto de vista
normativo, exceções às exceções. A ensuing loss clause o comprova. Sua função é a de
excepcionar a exceção posta em contrato de seguro all risks.
Porém, o que significa a expressão ensuing loss clause? Quais são suas caracterís-
ticas? Sendo criação dos Tribunais da common law, como essa figura se amolda ao
Direito brasileiro, no qual chegou por via do processo de circulação dos modelos jurí-
dicos,2 sendo recebida em contratos de seguro por força da atipicidade contratual?
Responder a essas questões é o objetivo a que nos propomos, tendo como
pano de fundo os pressupostos para a utilização do método comparatista,3 a saber: o
reconhecimento das diferenças – seja nas bases dos ordenamentos em comparação,
seja nas regras jurídicas que conformam o ambiente de origem da figura da ensuing
loss clause – mais do que a busca de similitudes, que também existem e serão desta-
cadas pelo viés da aproximação entre funções. Buscaremos, antes de mais, situar os
criptotipos: topos por meio dos quais as diferentes noções (as quais podem ser explí-
citas em um sistema e implícitas em outro) se tornarão compreensíveis a quem
1 TZIRULNIK, Ernesto. Seguro de riscos de engenharia: instrumento do desenvolvimento. São Paulo:
Roncarati, 2015, p. 161.
2 FRADERA, Véra Maria Jacob de. Reflexões sobre a Contribuição do Direito Comparado para a elabo-
ração do Direito Comunitário. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 95-99. Como explica a autora, a recep-
ção de modelos jurídicos estrangeiros – isto é, a migração de instituições jurídicas de um sistema para
outro – pode ter como fatores a economia, a política e a personalidade do legislador. No caso, observa-se
a preponderância do fator econômico, pois o mercado globalizado exige regras harmônicas ou, ao menos,
compatíveis.
3 Embora o emprego do Direito Comparado “valha por si”, como bem diz Rodolfo Sacco, este não conforma
um “ramo” do direito a explicitar determinado tipo de relações sociais, e, muito menos, é meio de exposi-
ção de falsa erudição pela colagem acrítica de soluções do Direito estrangeiro. Sua utilidade prática, como
via para o conhecimento do Direito é inafastável, mormente quando se deve tratar de um instituto deslo-
cado de seu ambiente jurídico original. Vide: SACCO, Rodolfo. Legal Formants. The American Journal of
Comparative Law. Oxford University Press, vol. 39, 1991, pp. 2-4; texto semelhante em francês: SACCO,
Rodolfo. La Comparaison Juridique au Service de la Connaisance du droit. Paris: Economica, 1991, p. 7; e
em português: SACCO, Rodolfo. Introdução ao Direito Comparado. Traduzido por Véra Jacob de Fradera.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001; FRADERA, Véra Maria Jacob de. Reflexões sobre a Contribuição
do Direito Comparado para a elaboração do Direito Comunitário. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 28.
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a cl á u s u l a d e e n s u i n g l o s s nos s e g u r o s a l l r i s k s
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compara4– e compreender os seus formantes,5 cientes de que a mera justaposição
das diferentes legislações ou decisões estrangeiras não é comparação jurídica: exi-
ge-se a investigação dos conceitos à sombra dos quais exprimem suas regras e das
categorias no interior das quais os sistemas se ordenam.6
São dois os modelos jurídicos em comparação cujos traços e os criptotipos são
ora investigados: as apólices de seguro “todos os riscos” (all risks) e, especificamente
nesses contratos, as cláusulas denominadas ensuing loss clauses. Trataremos do pri-
meiro com base em sua origem na prática contratual anglo-saxã e, já considerando
a sua recepção em contratos regidos pelo Direito brasileiro, dos cânones herme-
nêuticos chamados a operar em nosso sistema (Parte I). Quando os contratos de
seguro são celebrados nessa modalidade, faz parte dos usos a pactuação das cláu-
sulas de ensuing loss, categoria a ensejar, no Direito brasileiro, análise sob a perspec-
tiva da causalidade adequada (Parte II).
I. DOS SEGUROS ALL RISKS: FUNÇÃO E INTERPRETAÇÃO
Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga a garantir interesse legítimo do
segurado (Código Civil, art. 757). Obriga-se, mediante o recebimento do prêmio, a
4 A palavra foi cunhada pelo comparatista italiano Rodolfo Sacco para expressar todos aqueles elementos
que concorrem para formar a mentalidade do jurista de um determinando ordenamento jurídico, ou no
modo como apreende e interpreta as categorias jurídicas. São os elementos (no mais das vezes não expressos
ou não explicitamente expressos) gerados pelo contexto histórico e o ambiente cultural, social e econômico
no qual é o jurista formado. (Vide: SACCO, Rodolfo. La Comparaison Juridique au Service de la Connai-
sance du droit. Paris: Economica, 1991, § 44, p. 106; SACCO, Rodolfo. Introdução ao Direito Comparado.
Tradução de Véra Maria Jacob de Fradera. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, pp. 157-160).
5 A expressão “formante” também se deve ao comparatista italiano Rodolfo Sacco, que assim explicita o seu
significado: “Em uma primeira e grosseira análise, diremos que no ordenamento coexistem estes vários
conjuntos, aos quais daremos o nome de ‘formante’ do ordenamento (nota de rodapé): teremos assim um
formante legal, um formante doutrinário, etc. Sintetizando, a ótica do jurista que se dedica à análise do
direito de um só país consiste em reconhecer que o direito vivo comporta muitos formantes (L, D, M,
A, E), e em eliminar as complicações que podem derivar da multiplicidade de ‘formantes’, através de uma
equação estabelecida a priori: L = D = M = A = E (princípio da unidade do ordenamento jurídico) (...)
Nota de rodapé: Em um primeiro momento (desde 1974, era chamado de ‘componente’. A partir de 19179,
consideramos mais expressivo o termo formante inspirado na fonética. Desde então, o termo se tornou
bastante comum. Os não comparatistas não vão por isso além da dissociação superficial entre formante
legal, doutrinário e jurisprudencial”. SACCO, Rodolfo. Introdução ao Direito Comparado. Traduzido por
Véra Jacob de Fradera. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 72. De modo sintético: um formante é,
o conjunto de elementos subjacentes às regras jurídicas, podendo consistir nas elaborações doutrinárias
que consolidam certa interpretação, nos elementos considerados pelo julgador, as definições, as máximas
etc. SACCO, Rodolfo. La Comparaison Juridique au Service de La Conaissance du Droit. Paris: Econo-
mica, 1991, pp. 35-50.
6 DAVID, René; JAUFFRET-SPINOSI, Camille; GORÉ, Marie. Les grands systèmes du droit contempo-
rains. 12. ed. Paris: Dalloz, 2016, § 12, p. 12.
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