Conjugalidade infanto-juvenil

AutorElisa Cruz
Ocupação do AutorDoutora e Mestra em Direito Civil pela UERJ. Professora. Defensora Pública no Estado do Rio de Janeiro.
Páginas135-150
CONJUGALIDADE INFANTO-JUVENIL
Elisa Cruz
Doutora e Mestra em Direito Civil pela UERJ. Professora. Defensora Pública no Estado
do Rio de Janeiro.
Sumário: 1. Introdução – 2. Crianças e adolescentes em relações de conjugalidade: origens e fun-
damentos jurídicos de admissibilidade – 3. Lei 13.811/2019: Proibir o casamento é suciente? – 4.
Conclusão – 5. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Na compilação de dados do registro civil de 2018, o Instituto Brasileiro de
Geograf‌ia e Estatística (IBGE) apurou a existência de 199 casamentos de crianças
e adolescentes mulheres com menos de 18 anos de idade e 89.746 casamentos de
crianças, adolescentes e jovens mulheres entre 15 e 19 de idade. Nenhuma criança
ou adolescente homem com menos de 15 anos de idade se casou no período e ape-
nas 50 casamentos de crianças, adolescentes e jovens homens entre 15 e 19 de idade
constaram na mesma pesquisa.1
Esses são, contudo, apenas os dados de celebração do casamento que contam
com registro civil of‌icial e, assim, podem ser contabilizados. De acordo com o Instituto
Promundo, a Plan Internacional Brasil e a Universidade Federal do Pará (UFPA) o
Brasil contava com 1,3 milhão de mulheres até 18 anos de idade casadas ou em uniões
estáveis (informais) em 2015, sendo 877 mil com até 15 anos de idade.2 Em relatório
publicado em junho de 2020, o Fundo de População das Nações Unidas (UFNPA)
apontava que cerca de 01 em cada 04 mulheres se casa ou constitui união estável
antes dos 18 anos de idade no Brasil, numa taxa percentual de 26% de conjugalidade
quando a média mundial é de (ainda altos) 20%.3
As pesquisas elencam cinco causas principais do casamento infantil: (1) o de-
sejo de um membro da família, em função de uma gravidez indesejada, de proteger
a reputação da menina ou da família e para assegurar a responsabilidade do homem
de “assumir” ou cuidar da menina e do bebê potencial; (2) o desejo de controlar a
1. Dados do registro civil de 2018 constantes das Tabelas 4.3.1 e 4.3.2 – Casamentos, disponível em: https://
www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9110-estatisticas-do-registro-civil.html?edicao=26178&-
t=resultados. Acesso em: 14 maio 2020.
2. TAYLOR, Alice et alii. “Ela vai no meu barco”: casamento na infância e adolescência no Brasil. Resultados de
pesquisa de método misto. Promundo, set. 2015. Disponível em: https://promundoglobal.org/wp-content/
uploads/2015/07/SheGoesWithMeInMyBoat_ChildAdolescentMarriageBrazil_PT_web.pdf. Acesso em:
08 jul. 2020.
3. Notícia disponível em: https://nacoesunidas.org/unfpa-1-em-cada-4-meninas-se-casa-antes-dos-18-anos-
-no-brasil-reverter-tal-situacao-e-urgente/. Acesso em: 08 jul. 2020.
ELISA CRUZ
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sexualidade das meninas e limitar comportamentos percebidos como “de risco”, as-
sociados à vida de solteira, tais como relações sexuais sem parceiros f‌ixos e exposição
à rua; (3) o desejo das meninas e/ou membros da família de ter segurança f‌inanceira;
(4) uma expressão da autonomia das meninas e um desejo de sair da casa de seus
pais, pautado em uma expectativa de liberdade, ainda que dentro de um contexto
limitado de oportunidades educacionais e laborais, bem como de experiências de
abuso ou controle sobre a mobilidade das meninas em suas famílias de origem; (5)
o desejo dos futuros maridos de se casarem com meninas mais jovens (consideradas
mais atraentes e de mais fácil controle do que as mulheres adultas) e o seu poder
decisório desproporcional em decisões maritais.4
Se a aceitabilidade social da conjugalidade infantil – tanto de casamento como
de união estável – é tão elevada no país, por que o choque com esses dados e quais
as críticas que são se apresentam a essa realidade? Em primeiro lugar, elas revelam
desigualdades de gênero, uma vez que a taxa de conjugalidade feminina é muito
superior à masculina. Em segundo lugar, porque a conjugalidade precoce viola di-
reitos fundamentais de crianças e adolescentes e impulsiona evasão escolar, riscos
de transtornos mentais, violência de gênero, exclusão social e gravidez precoce com
riscos à saúde da gestante, ao nascituro e ao recém-nascido.5
De modo a reduzir a conjugalidade infantil no Brasil e no mundo, a ONU in-
cluiu na Agenda de Desenvolvimento Sustentável 2030 de 2015 dentre os objetivos
de igualdade de gênero e empoderamento feminino o item 5.3, que busca “eliminar
todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e de crianças e
mutilações genitais femininas”. Contudo, esse objetivo não será atingido integral-
mente até 20306, embora se estime que a implementação de medidas favoráveis à
Agenda possa assegurar que cerca de 84 milhões de crianças e adolescentes mulheres
não tenham seus direitos violados pelo casamento precoce ou pela mutilação genital.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu relatório, em
inglês, em 2019 em que apontava que a taxa de conjugalidade infantil nos países
americanos é de cerca de 25% e essa taxa tem se mantido estável nos últimos vinte
e cinco anos no continente, uma vez que poucas iniciativas foram adotadas para a
redução de casamentos infantis.
Esse é o cenário que serve de base para a análise jurídica do presente artigo, cuja
primeira seção irá buscar as raízes jurídicas que permitiram (e ainda permitem) a
conjugalidade infantil, o que signif‌ica um estudo sobre as bases do Direito de Família,
suas inf‌luências, a importância do casamento nessa área jurídica, o reconhecimento
4. Matéria disponível em: https://nacoesunidas.org/artigo-casamento-infantil-o-que-falta-para-erradicar-es-
sa-pratica/. Acesso em: 14 maio 2020.
5. Veja-se a Recomendação Geral n. 18 do Comitê sobre Direitos da Criança da ONU: https://www.acnur.org/
f‌ileadmin/Documentos/BDL/2014/9925.pdf?f‌ile=f‌ileadmin/Documentos/BDL/2014/9925. Acesso em: 04
nov. 2020.
6. Informação da ONU: https://nacoesunidas.org/unfpa-1-em-cada-4-meninas-se-casa-antes-dos-18-anos-
-no-brasil-reverter-tal-situacao-e-urgente/. Acesso em: 08 jul. 2020.

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