União estável

AutorJoyceane Bezerra de Menezes
Ocupação do AutorDoutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Po?s-doutorado em 'Novas Tecnologias e Direito' na Mediterranea Internacional Centre for Human Rights Research (MICHR), Departamento de Direito, Economia e Humanidades - Universidade Reggio Calabria (Itália).
Páginas183-218
UNIÃO ESTÁVEL
Joyceane Bezer ra de Menezes
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Direito
pela Universidade Federal do Ceará. Pós-doutorado em “Novas Tecnologias e Direito”
na Mediterranea Internacional Centre for Human Rights Research (MICHR), Departa-
mento de Direito, Economia e Humanidades – Universidade Reggio Calabria (Itália).
Professora Titular da Universidade de Fortaleza – Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Direito (Mestrado/Doutorado) da Universidade de Fortaleza, na Disciplina de
Direitos de Personalidade. Professora associado IV, da Universidade Federal do Ceará.
Coordenadora do Grupo de Pesquisa CNPQ: Direito civil na legalidade constitucional.
Fortaleza, Ceará, Brasil. Editora da Pensar, Revista de Ciências Jurídicas – Universidade
de Fortaleza. Advogada.
E-mail: joyceane@unifor.br.
Sumário: 1. Conceito – 2. Elementos constitutivos e natureza jurídica do instituto – 3. Marco ini-
cial da união estável – 4. Impedimentos e causas suspensivas – 5. Estado civil e uso do nome – 6.
Direitos e deveres decorrentes da união estável – 7. Regime de bens – 8. União estável putativa – 9.
Conversão da união estável em casamento – 10. Dissolução da união estável – 11. União estável:
teses e enunciados – 12. Referências.
1. CONCEITO
A união estável formada entre homem e mulher corresponde a uma das moda-
lidades de entidade familiar e recebe especial proteção do Estado, segundo a Cons-
tituição da República (art. 225, § 3º.). A partir de 2011, com o julgamento da ADI
4.277 e ADPF 132, o Supremo Tribunal Federal atribuiu ao art. 1.723 interpretação
conforme à Constituição e passou a admitir a união estável entre pessoas do mesmo
sexo.1 Reconhecida a constitucionalidade da chamada união estável homoafetiva, o
1. A decisão do STF não ref‌letiu a unanimidade da doutrina, tampouco utilizou uma fundamentação jurídica
hegemônica ao Judiciário. Relembra Rolf Madaleno, “havia uma corrente refratária ao reconhecimento da
união homoafetiva e pela qual só deveriam ser partilhados na dissolução da sociedade de fato os bens hauridos
pelo esforço comum, como sucedeu no REsp 773.136/RJ, da Terceira Turma, relatado pela Ministra Nancy
Andrighi. Não foi diferente o voto vista do Ministro Fernando Gonçalves ao admitir que o direito positivo
não vedava a união de pessoas do mesmo sexo, mas disse que a legislação citada somente reconhecia, para
f‌ins de união estável a união de pessoas de sexos opostos. Ponderava o Ministro Fernando Gonçalves “não
haver condições de reconhecimento de união estável na relação afetiva de pessoas do mesmo sexo, porque
o desideratum dos textos relativos à convivência entre um homem e uma mulher é a constituição de família
e no campo do casamento e da união estável, à luz do que dispõe o art. 226, §3º., da Constituição Federal,
mais o art. 1º. da Lei 9.278/1996 e artigos 1.723 e 1.724 do Código Civil, apenas poderia ser reconhecida
como entidade familiar a convivência duradoura, pública e continua, de um homem e uma mulher” (MA-
DALENO, 2020, p. 447). Antes mesmo dessa decisão, a doutrina civilista oferecia fundamentação jurídica
sólida para o reconhecimento jurídico da união entre pessoas do mesmo sexo. Ana Carla Harmatiuk Matos
já sustentava a possibilidade jurídica da união entre pessoa do mesmo sexo com fundamento no direito à
felicidade e ao livre desenvolvimento da personalidade. À época da publicação, a autora já defendia que
a negativa do reconhecimento jurídico das relações estáveis entre pessoas do mesmo sexo, à vista de sua
orientação sexual, constituía discriminação jurídica e ofensa à dignidade da pessoa humana (2004, p. 148).
JOyCEANE BEZERRA DE MENEZES
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Superior Tribunal de Justiça admitiu a possibilidade de sua conversão em casamento,
por ocasião do julgamento do REsp 1.183.378-RS, dando provimento ao pedido de
duas mulheres que reivindicavam sua habilitação civil para o matrimônio.2
Trata-se de uma união de fato, pautada pela informalidade e, por isso, difere
do casamento que resulta de um negócio jurídico solene e complexo. Manifesta-se
como uma família forjada na comunhão fática da vida, cuja prova é primordialmente
testemunhal, embora tantos outros instrumentos probatórios possam corroborar
para a af‌irmação de sua existência.3 E qualif‌ica-se constitucionalmente como entidade
familiar, expressão sinonímia de família, para o f‌im de produzir os mesmos efeitos
sociais e jurídicos decorrentes da família matrimonial.4
Casamento e união estável constituem distintas modalidades de família que
produzem semelhantes efeitos jurídicos nas esferas pessoal, social e patrimonial do
casal. Distinguem-se apenas quanto à natureza jurídica: enquanto a união estável
é ato-fato jurídico, marcada pela informalidade de sua constituição; o casamento é
um negócio jurídico complexo, de direito de família.
A Lei 9.278/1996 foi a segunda norma editada para a disciplina jurídica da união
estável, em complementação à Lei 8.971/1994. Na fase de sua elaboração, quando o
projeto de lei aprovado pelas casas legislativas foi submetido à sanção presidencial,
coube ao Presidente da República vetar três dos seus dispositivos que imprimiam
Menezes e Oliveira (2009) também sustentaram a possibilidade jurídica da união homoafetiva a partir do
direito ao livre desenvolvimento da personalidade que engloba a expressão da orientação sexual.
2. O passo seguinte veio do Conselho Nacional de Justiça, editando a Resolução 175/2013, vedando as recusas
de requerimento dessa natureza pelas autoridades notariais.
3. A existência da união estável pode ser provada por todos os meios de prova em direito admitidos. Vale o rol
exemplif‌icativo sugerido por Tânia Nigri (2020, p. 60-61).
“1. Comprovação de dependência emitida por autoridade f‌iscal ou órgão correspondente à Receita Federal.
2. Testamento com destinação de legado ou herança ao interessado. 3. Fotograf‌ias do casal. 4. Escritura de
compra e venda, registrada no Registro de Propriedade de Imóveis, em que constem os interessados como
proprietários, ou contrato de locação de imóvel em que f‌igurem como locatário
5. Prova de comunhão nos atos do dia a dia. 6. Perf‌is em redes sociais. 7. Certidão de nascimento de f‌ilho
comum. 8. Procuração reciprocamente outorgada. 9. Certidão de casamento religioso. 10. Contas bancárias
conjuntas. 11. Título de clube em que o interessado seja dependente. 12. Plano de saúde em que conste
o nome do interessado como dependente. 13. Apólice de seguro em que o interessado seja listado como
benef‌iciário. 14. Contas no mesmo endereço. 15. Contrato de estabelecimento de ensino, frequentado pelo
interessado, em que o suposto companheiro f‌igure como responsável f‌inanceiro.”
4. Nesse aspecto, vale ressaltar o esclarecimento do Supremo Tribunal Federal, por meio do voto do Relator,
Ministro Ayres Brito, quando do julgamento da ADI 4.277/2011 – “que a terminologia “entidade familiar”
não signif‌ica algo diferente de “família”, pois não há hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as
duas formas de constituição de um novo núcleo doméstico. Estou a dizer: a expressão “entidade familiar”
não foi usada para designar um tipo inferior de unidade doméstica, porque apenas a meio caminho da família
que se forma pelo casamento civil. Não foi e não é isso pois inexiste essa f‌igura de subfamília, família de
segunda classe ou família “mais ou menos” (relembrando o poema de Chico Xavier). O fraseado foi apenas
usado como sinônimo perfeito de família, que é um organismo, um aparelho, uma entidade, embora sem
personalidade jurídica. Logo, diferentemente do casamento ou da própria união estável, a família não se
def‌ine como simples instituto ou f‌igura de direito em sentido meramente objetivo. Essas duas objetivas
f‌iguras de direito que são o casamento e a união estável é que se distinguem mutuamente, mas o resultado a
que chegam é idêntico: uma nova família, ou, se se prefere, uma nova “entidade familiar”, seja a constituída
por pares homoafetivos, seja a formada por casais heteroafetivos.”
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maior formalidade ao contrato de convivência (arts. 3º., 4º. e 6º., do Projeto de Lei
1.888, de 1991; 84/94 no Senado Federal). Na fundamentação do veto, o Presidente
alegou que os citados dispositivos pretendiam uma formalização incompatível com
a intenção primária do legislador de reconhecer “a posteriori”, os efeitos de determi-
nadas situações factuais consolidadas como entidade familiar. A seu juízo, o excesso
de formalidade poderia confundir a união estável com um casamento de segundo
grau.5 Observa-se, desde a primeira hora, uma tendência de “formalização” da união
estável alheia à compleição do instituto (DELGADO; BRANDÃO, 2018).
Em 2017, o Supremo Tribunal Federal voltou a tratar da união estável. Ao julgar
o Recurso Extraordinário 878694, com repercussão geral, reconheceu a inconstitu-
cionalidade do art. 1.790, do Código Civil e equiparou a união estável ao casamento
para f‌ins de direito sucessório, garantindo ao companheiro supérstite o mesmo regi-
me jurídico aplicável ao cônjuge viúvo, nos termos do art. 1.829, do CC. Com essa
decisão, os institutos da união estável e do casamento se aproximaram ainda mais,
merecendo a crítica de muitos civilistas, dentre os quais, Rodrigo da Cunha Pereira
(2021). Enunciado Interpretativo 641, aprovado na VIII Jornada de Direito Civil,
do Conselho de Justiça Federal reiterou a inconstitucionalidade do art. 1.790, mas
destacou que entre o casamento e a união estável persistem diferenças estruturais,
restringindo a equiparação aos domínios da solidariedade familiar:
A decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade do art. 1.790, do
Código Civil não importa equiparação absoluta entre o casamento e a união estável. Estendem-se
à união estável apenas as regras aplicáveis ao casamento que tenham por fundamento a solida-
riedade familiar. Por outro lado, é constitucional a distinção entre os regimes, quando baseada
na solenidade do ato jurídico que funda o casamento, ausente na união estável.
A proteção jurídica constitucionalmente assegurada à união estável, associada
ao apego excessivo à segurança jurídica que prestigia sobremaneira os negócios
jurídicos, parece ser o combustível determinante para a crescente e excessiva
tendência de formalização da união estável, movimento incompatível com a sua
natureza jurídica e social.6 Não raro, uma escritura pública declaratória de união
5. Nas razões do veto, disse o Presidente Fernando Henrique Cardoso: “em primeiro lugar, o texto é vago em
vários dos seus artigos e não corrige as eventuais falhas da Lei 8.971. Por outro lado, a amplitude que se
dá ao contrato de criação da união estável importa em admitir um verdadeiro casamento de segundo grau,
quando não era esta a intenção do legislador, que pretendia garantir determinados efeitos a posteriori a
determinadas situações nas quais tinha havido formação de uma entidade familiar. Acresce que o regime
contratual e as presunções constantes no projeto não mantiveram algumas das condicionantes que constavam
no projeto inicial. Assim sendo, não se justif‌ica a introdução da união estável contratual nos termos do art.
3º, justif‌icando-se pois o veto em relação ao mesmo e, em decorrência, também no tocante aos artigos 4º
e 6º.” Mensagem De Veto 420, de 10 de maio de 1996. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/
fed/lei/1996/lei-9278-10-maio-1996-362582-veto-20892-pl.html. Acesso em: 02 dez. 2021.
6. Rodrigo Pereira da Cunha é um dos críticos desta tendência de se igualarem os dois institutos. In verbis, “Em
que pese a polêmica discussão da igualdade entre essas duas formas de constituição de família e o julgamento
pelo STF, equiparando essas duas entidades familiares, é razoável que diferenças existam. Isto não signif‌ica
a prevalência de uma sobre a outra. O Estado não pode e não deve interferir na liberdade dos sujeitos de
viver relações de natureza diferente daquelas por ele instituídas e desejadas. Se em tudo se equipara união

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