Correição Parcial

AutorManoel Antonio Teixeira Filho
Ocupação do AutorAdvogado
Páginas476-489

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1. Nótulas históricas
1.1. A correição no direito estrangeiro antigo

Certos traços da supplicatio romana podem ser constatados também na correição parcial, razão por que não seria despropositado afirmar-se que reside naquela a origem remota desta. Basta lembrar que, pela supplicatio, eram formuladas reclamações contra certas irregularidades processuais praticadas pelos juízes, entre as quais Calamandrei aponta a denegação do recurso de apelação (La Casación Civil. Trad. de Sentís Melendo. Buenos Aires, 1945. p. 102, I).

Mais tarde, a supplicatio foi incorporada pelo direito positivo português reinol, quando permitiu que as partes formulassem sopricações ao rei, com o objetivo de serem reexaminadas determinadas decisões, denominadas também querimas ou querimonias; essas sopricações penetraram em Portugal em decorrência das restrições impostas por D. Afonso IV quanto aos casos em que a apelação era admissível.

Observa Calamandrei, por outro lado, que havia juízes venezianos incumbidos de apreciar as “querelas por motivo de desordem”, consistentes em reclamações contra os desvios de procedimento. A função desses juízes — ou síndicos — era de receber as querelas de nulidade por erros de procedimento e decidir sobre elas, embora, quando as rechaçavam de modo puramente consultivo, não tinham função política, posto que em absoluto não foram instituídos para manter inviolada a soberania das leis, senão e apenas para evitar as ‘desordens’ formais que podiam ocorrer na tramitação dos feitos” (ob. cit., p. 242-243).

A regularidade formal do procedimento sempre foi objeto de medidas garantidoras, estabelecidas pelos legisladores portugueses, como se pode perceber pelo Agravo de Ordenação não Guardada existente no texto das Ordenações do Reino. Esse agravo, anota Moacyr Amaral Santos, tinha como objetivo “atacar decisões interlocutórias desrespeitadoras das finalidades extrínsecas do processo, sem relação com o mérito da causa” (Primeiras Linhas..., 4.ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1971. vol. 3, p. 213) O Agravo de Ordenação não Guardada distinguia-se dos agravos de petição e de instrumento pois, enquanto estes somente poderiam ser interpostos nos casos expressamente previstos em lei, aquele era cabível dos despachos em geral e das sentenças definitivas, bastando, para tanto, que o julgador deixasse de observar (“guardar”) a ordenação quanto à boa ordem do procedimento.

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Cumpre esclarecer, contudo, que a reclamação prevista pelas Ordenações Filipinas em nada se relacionava à correição parcial, uma vez que se referia à insatisfação do litigante quanto à partilha efetuada pelo juiz.

Alguns estudiosos admitem que a correição parcial esteve também no texto do Regulamento n. 737, sob a forma de agravo de instrumento por dano irreparável, a que se referia o § 15 do art. 669 daquele Código. Tal agravo era utilizado para impugnar os atos irregulares do juiz, praticados na fase da instrução procedimental, desde que esses atos não pudessem ser corrigidos mediante recurso ou pelo próprio julgador. O dano irreparável configurava-se (para efeito de interposição do agravo em exame) sempre que o despacho judicial não pudesse ser modificado pelo juiz que o proferiu (e no mesmo processo), nem por sentença definitiva.

1.2. A correição parcial no Brasil

O aparecimento da correição parcial, entre nós, deu-se com o Decreto n. 9.623, de 1911, que dispôs sobre a organização judiciária do Distrito Federal. Estabelecia o art. 142 desse texto legal que toda vez que viesse ao conhecimento do Conselho Supremo ou do Procurador-Geral “fato grave, que exija correição parcial em qualquer ofício da justiça, deverá aquele efetuá-la imediatamente, qualquer que seja a época do ano” (sublinhamos).

Desta forma, ao lado da correição ordinária, exercida anualmente, o Decreto supracitado trouxe a correição parcial, que poderia ser realizada em qualquer época do ano.

Anota Moniz de Aragão que o Decreto n. 9.623, modificado pelo n. 16.273, de 1923, não inseriu, dentre as atribuições do antigo Conselho Supremo, o exercício da correição parcial; essa omissão, porém, foi sanada pelo Código de Processo de 1924, em seu art. 1.195 (A Correição Parcial. Curitiba: Imprensa da Univ. Fed. do Paraná, 1969. p. 18).

É interessante observar que o CPC do Distrito Federal definiu a finalidade da correição parcial, indicando-a como a providência apta para corrigir “omissão de deveres atribuída aos juízes e funcionários da justiça, ou para emenda de erros, ou abusos, contra inversão tumultuária dos atos e fórmulas da ordem legal dos processos, em prejuízo do direito das partes”.

Essa competência do Conselho foi preservada pelo Decreto n. 5.053, de 1926, que vinculou o cabimento da correição parcial à inexistência de recurso específico para buscar a reforma do ato impugnado.

Já na vigência do CPC de 1939, o Decreto-lei n. 2.726, de 31 de outubro de 1940, atribuiu ao Corregedor-Geral do Tribunal de Justiça da Capital da República competência para “proceder disciplinarmente e sem prejuízo para o andamento do feito, a requerimento dos interessados ou do Procurador-Geral, as correições parciais em autos, para a emenda de erros, ou abusos, que importem na inversão tumultuária dos atos e fórmulas da ordem legal do processo, quando para o caso não haja recurso”. Tempos depois, o Código de Organização Judiciária do Distrito Federal (Decreto-lei n. 8.527, de 21-12-1945) manteve a correição parcial, conforme se lê em seu art. 12, III; o texto do referido Decreto-lei foi modificado pela Lei n. 1.301, de 28 de dezembro de 1950, facultando ao relator — desde

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que a providência se fizesse necessária para salvaguardar o direito da parte — ordenar que fosse “suspensa, por trinta dias improrrogáveis, a execução de despacho reclamado”.

Por força, aliás, da Lei n. 1.301/50, a correição parcial recebeu o nomen iuris de reclamação.

No plano da Justiça do Trabalho, essa correição está prevista nos arts. 682, XI, e 709, II, da CLT. O primeiro estabelece ser da competência dos Presidentes dos Tribunais Regionais “exercer correição, pelo menos uma vez por ano, sobre as Varas, ou parcialmente sempre que se fizer necessário...” (sublinhamos); estatui o segundo constituir atribuição do Corregedor-Geral “decidir reclamações contra os atos atentatórios da boa ordem processual praticados pelos Tribunais Regionais e seus Presidentes, quando inexistir recurso específico”.

As competências supracitadas não se confundem com a que é atribuída pelo art. 678, I, “d”, 2, da CLT, às Turmas dos Regionais, para processarem e julgarem “em última instância” as reclamações formuladas contra atos administrativos praticados por seu Presidente ou por qualquer de seus membros, assim como pelos juízes de primeiro grau e por seus funcionários.

2. Natureza jurídica

Pertencem ao passado as correntes de pensamento que sustentavam ser a correição parcial uma providência ou um recurso administrativo31, mero exercício do direito de petição, ou um direito político. Para a moderna doutrina publicista, essa providência tem caráter recursal, embora se trate de um recurso judicial sui generis e de origem manifestamente clandestina (Ega, ob. cit., p. 54).

É verdade que há vozes objetando a natureza recursal que se vem atribuindo à correição parcial, sob o argumento de que apenas são recursos aqueles meios de impugnação aos atos dos juízes previstos em lei; e nas leis processuais vigentes inexiste qualquer referência a essa medida (CPC, CLT). O fato de, efetivamente, a correição parcial não estar incluída no rol dos recursos (CPC, art. 994; CLT, art. 893, caput) apenas confirma a sua clandestinidade, uma vez que essa figura penetrou nos Regimentos Internos dos Tribunais brasileiros e, por esse modo, vem sobrevivendo até os dias de hoje. A possibilidade, entretanto, de a correição parcial acarretar a reforma ou a cassação do ato judicial atacado revela o seu perfil recursal.

É oportuno observar que o substantivo correição significa corrigir, emendar (do latim correctio). E, em certo sentido, só se pode corrigir reformando ou cassando o ato. O adjetivo, todavia, é correcional, e não, correicional.

Se a expressão: “recurso clandestino”, empregada por Moniz de Aragão, bem se presta para identificar a forma pela qual a correição parcial ingressou em nosso meio jurídico, parece-nos que outra expressão, “recurso censório”, pode ser concebida para qualificar a índole ditatorial da medida. Há razões históricas a justificar essa afirmação, pois outrora

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a competência para realizar correições era privativa do monarca, mediante Cartas de Justiça, cujo fato — segundo supomos — teria levado o eminente Pontes de Miranda a identificá-la como um “sinal de realismo ditatorial” (Comentários..., vol. V, p. 236).

Pesa contra a correição, ainda, a particularidade de ser apreciada por órgão unipessoal (Corregedor), ao contrário dos recursos típicos, que, no geral, são julgados por órgão colegiado. Tal circunstância acentua, a nosso ver, o caráter ditatorialesco da correição parcial, que é responsável pela submissão dos juízes ao poder censório do Corregedor — por motivos, não raro, infundados, ou, quando não, estribados em propósitos de desafiar a amplitude de poderes que os juízes do trabalho, por lei (CLT, art. 765), possuem na direção do processo.

É preciso ressaltar que, em vários casos, a correição parcial, a pretexto de corrigir um ato do juiz (que se alega haver acarretado uma inversão tumultuária do procedimento etc.), traz, inconfesso, o objetivo de instaurar, ela própria, um tumulto do...

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