Curatela e tomada de decisão apoiada

AutorJacqueline Lopes Pereira
Ocupação do AutorDoutoranda e Mestra em Direito das Relações Sociais pelo PPGD/UFPR. Especialista em Direito das Famílias e Sucessões pela ABDConst. Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Direito Civil - Virada de Copérnico (UFPR). Pesquisadora visitante do Instituto Max Planck para Direito Comparado e Internacional Privado em Hamburgo, na Alemanha. Servidora...
Páginas625-646
CURATELA E TOMADA DE DECISÃO APOIADA
Jacqueline Lopes Pereira
Doutoranda e Mestra em Direito das Relações Sociais pelo PPGD/UFPR. Especialista em
Direito das Famílias e Sucessões pela ABDConst. Pesquisadora do Núcleo de Estudos
em Direito Civil – Virada de Copérnico (UFPR). Pesquisadora visitante do Instituto Max
Planck para Direito Comparado e Internacional Privado em Hamburgo, na Alemanha.
Servidora pública do TJPR.
Sumário: 1. Introdução – 2. O paradigma da “substituição da vontade” – 3. Sistema de apoios na
convenção sobre os direitos das pessoas com deciência – 4. Curatela – 5. Tomada de decisão
apoiada – 6. Conclusão – 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Com o advento da Constituição Federal de 1988, muito do esforço legislativo
e doutrinário no campo do Direito das Famílias se voltou à constitucionalização e
leitura das relações familiares em perf‌il democrático e eudemonista. Entretanto,
alguns sujeitos que compõem esse quadro continuaram a ser tratados mais como
“objeto” de proteção do que, de fato, como “sujeitos” cujas potencialidades merecem
compreensão do ponto de vista jurídico.
Nesses grupos, citam-se a criança e o adolescente, a pessoa idosa e a pessoa
com def‌iciência. Este último grupo vivencia sobrepostas vulnerabilidades, que se
intensif‌icam no cenário de países em desenvolvimento. No Brasil, levantamento de
dados de 2018 do IBGE aponta que 12,7 milhões de pessoas vivenciam algum tipo
de def‌iciência, sendo que cerca de 4,3 milhões estão registradas no “Cadastro Único”
para programas sociais (IBGE, 2018).
O presente capítulo se dedica a expor quais mudanças ocorreram na última
década em torno da capacidade civil da pessoa com def‌iciência, com enfoque na
curatela e na tomada de decisão apoiada.
Desde logo, é importante ressaltar que, no âmbito do Direito Civil, a falta de
protagonismo da pessoa com def‌iciência psíquica ou intelectual demonstra resquí-
cios da lógica eminentemente patrimonial que fundou o sistema jurídico de tradição
Civil Law.
O modelo de substituição de vontade foi colocado em dúvida com a principiolo-
gia exarada pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Def‌iciência (CDPD), de
2007. Em superação ao modelo que tem como pressuposto a capacidade apreendida
nos perf‌is de “gozo” e de “exercício”, emerge a noção conglobante de “capacidade
legal” e as medidas de apoio adequadas às peculiaridades e potencialidades da pessoa
com def‌iciência psíquica ou intelectual.
JACQUELINE LOPES PEREIRA
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A incursão teórica, em primeiro momento, revisitará o quadro que vigorou ao
longo do século XX e primeiros anos do século XXI em torno da capacidade civil
nas codif‌icações de 1916 e 2002. Em segundo passo, apresentará o modelo adotado
pela CDPD para compreensão da capacidade legal de modo conglobante. Em terceiro
ponto, será apresentada a curatela em seu sentido repersonalizado e o que, af‌inal, há
de diferente da curatela anterior às mudanças da Lei 13.146/2015. No último ponto,
examinará as dimensões estrutural e funcional da tomada de decisão apoiada, assim
como os óbices à sua implementação.
O instigante tema da capacidade civil, curatela e tomada de decisão apoiada é
deveras amplo e, por isso, não se pretende exaurir as questões que advêm da prática
jurídica em torno dessas f‌iguras. O objetivo geral deste estudo é trazer os arcabouços
teóricos que envolvem a temática e explorar didaticamente esses dois institutos sob
a perspectiva da busca por uma vida independente e digna da pessoa com def‌iciência
no contexto do direito das famílias democrático.
2. O PARADIGMA DA “SUBSTITUIÇÃO DA VONTADE”
Para adentrar o tema, rememora-se a história do hospital psiquiátrico “Colônia”
que foi retratada na obra de Daniela Arbex. O livro “Holocausto brasileiro” remontou
a exclusão e segregação de pessoas com def‌iciência psíquica ou intelectual e o modelo
médico que permeou a atuação da instituição entre as décadas de 1950 e 1960. Dentre
as muitas imagens e depoimentos, sobressai a condição de parca higiene, violação da
dignidade e mínimo existencial de aproximadamente 60 mil pessoas que passaram
pelas instalações (ARBEX, 2013, p. 13-14).
Compreender o atual sistema de apoios à capacidade civil exige a contextuali-
zação da lógica precedente. O modelo médico da def‌iciência partia da perspectiva de
que haveria seres humanos com “plena faculdade mental” e outros que não teriam tal
aptidão. Heloisa Helena Barboza e Vitor Almeida pontuam que o modelo inspirado
na patologização da def‌iciência encontra respostas na ideia de “reabilitação” numa
tentativa de “normalização” dos sujeitos:
[o modelo médico] encara a deciência como condição patológica, de natureza individual.
Desse modo, a pessoa deveria ser tratada através de intervenções médicas, ser “reparada”, para
tornar-se o quanto possível “normal”. Esse modelo, denominado “modelo reabilitador”, tem como
características principais a substituição da divindade pela ciência e a admissão da possibilidade
de algum aporte para a sociedade por parte da pessoa com deciência, na medida em que sejam
“reabilitadas” ou “normalizadas”. [...] (BARBOZA; ALMEIDA JUNIOR, 2017, p. 25).
O modelo dialoga com a busca de substituição da vontade da pessoa com def‌i-
ciência psíquica ou intelectual, que não seria “apta” para tomar decisões de natureza
patrimonial ou existencial por conta própria. Essa lógica foi imantada nas codif‌icações
modernas e, nesse ponto, sublinha-se que o Código Civil de 1916 foi inspirado no
Código Civil Francês de 1804 e no Código Civil Alemão (BGB) de 1896, diplomas
europeus conhecidos pela pretensão de completude e coerência das relações entre

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