Vulnerabilidades nas relações de família: o problema da desigualdade de gênero

AutorMaria Celina Bodin de Moraes
Ocupação do AutorProfessora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ e Professora Associada do Departamento de Direito da PUC-Rio. Doutora em Direito Civil.
Páginas581-598
VULNERABILIDADES NAS RELAÇÕES DE FAMÍLIA:
O PROBLEMA DA DESIGUALDADE DE GÊNERO1
Maria Celina Bodin de Moraes
Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ e Professora Asso-
ciada do Departamento de Direito da PUC-Rio. Doutora em Direito Civil.
E-mail: mcbm@puc-rio.br
Homens e mulheres são feitos no mesmo molde:
exceto a educação e os usos, a diferença não é grande.
— Montaigne
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou.
– Adélia Prado
Sumário: 1. Introdução – 2. A multimilenar armação da superioridade do homem sobre a mulher
– 3. Dignidade da pessoa humana e a convivência familiar – 4. A necessidade de lei e de outros
mecanismos defensivos – 5. Conclusão – 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Ao contrário do que normalmente se pensa, só recentemente a violência tor-
nou-se um problema central da humanidade. Embora presente em toda a nossa
história, e provavelmente indissociável da experiência humana, foi somente a partir
da modernidade, com a elaboração e difusão de valores como liberdade e igualdade,
que se f‌irmou a noção de cidadania.2 Dela decorre que nas sociedades democráticas,
ao menos teoricamente, todos têm direitos humanos – assim denominados porque
inerentes à condição humana – que lhes protegem contra coerções, maus-tratos e
outros atos de desumanização.
Embora sejam frequentemente usados como termos sinônimos, há quem dis-
tinga os direitos humanos dos direitos fundamentais, considerando estes últimos
como “os direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito
1. Agradeço à Professora Renata Vilela Multedo pelas valiosas sugestões e atualizações.
2. V. DOMENACH, Jean-Marie. La violencia y sus causas. Paris: Editorial UNESCO, 1981. Segundo o autor,
a partir desse momento, ações que antes eram percebidas como inevitáveis na ordem do mundo, e mesmo
desejáveis, passaram a ser combatidas.
MARIA CELINA BODIN DE MORAES
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constitucional de um determinado Estado”. 3 Seriam, pois, “direitos positivos de
matriz constitucional”.4 A principal consequência desta distinção é que os direitos
fundamentais alcançam maior grau de efetivação, especialmente em face da existên-
cia de instâncias dotadas de poder de fazer respeitar tais direitos. Ora, inserindo-se
esta def‌inição na perspectiva de um direito civil constitucionalizado, percebe-se
imediatamente o seu impacto nas relações privadas, uma vez que os destinatários da
Constituição são não apenas órgãos legislativos, judiciários e executivos, mas todos
os membros do corpo social.
Nas questões de gênero, salta aos olhos o problema da violência doméstica e como
ele passa a dizer respeito não mais apenas à instância privada da órbita familiar, mas,
também e especialmente, às instâncias públicas, dotadas de poder para resguardar
os direitos fundamentais dos membros da família. Com efeito, estando os direitos
fundamentais positivados, a eles necessariamente contrapõem-se deveres jurídicos.
No direito anterior, a família, opaca, centrava-se no casamento indissolúvel e o marido
era o chefe da sociedade conjugal; já no direito atual, isto é, na ordem constitucional
de 1988, o fundamento jurídico da família, em virtude da garantia de igualdade entre
os cônjuges, passou a ser o da solidariedade familiar (CF, arts. 226-230).
Neste aspecto, tratou a Constituição de consignar especial proteção às mulheres,
ao impor a inelutável igualdade aos homens (arts. 5º, I, e 226, § 3º), resguardando
ainda outros grupos cuja vulnerabilidade é notória: crianças e adolescentes, pessoas
com def‌iciência (arts. 203, V, e 227, II), idosos (arts. 203, V, e 230) e índios (arts.
231 e 232).
O legislador ordinário, em cumprimento ao ditado constitucional (CF, arts. 227
e 230) buscou paulatinamente diminuir a vulnerabilidade intrafamiliar com relação
às crianças, aos adolescentes e aos idosos (Estatuto da Criança e do Adolescente, de
1990, e Estatuto do Idoso, de 2003). Voltou-se, enf‌im, para a proteção específ‌ica da
vulnerabilidade de gênero e sancionou — com signif‌icativo atraso em relação aos
demais ordenamentos da própria América Latina — a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de
2006, chamada de Lei Maria da Penha,5 que “cria mecanismos para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição
Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra a Mulher”.
O objetivo da lei foi tornar mais rigorosa a punição para agressões contra a mu-
lher ocorridas no âmbito doméstico. A Lei Maria da Penha alterou o Código Penal e
3. Em busca de um consenso na def‌inição terminológica, v. SARLET, Ingo W.. A ef‌icácia dos direitos funda-
mentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 33 e ss. onde expõe criticamente os critérios
de Canotilho, Pérez Luño, Villalon, Habermas, dentre outros.
4. Id., ibidem.
5. O nome da lei é uma homenagem a Maria da Penha Maia, que foi agredida pelo marido durante seis anos e
f‌icou paraplégica, depois de sofrer um atentado a bala, em 1983. O marido tentou matá-la por outros meios
e somente foi punido depois de 19 anos, f‌icando preso em regime fechado apenas dois anos.

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