Da legitimidade da recusa à transfusão de sangue no tratamento de saúde por paciente testemunha de Jeová

AutorJoão Quinelato
Páginas239-258
DA LEGITIMIDADE DA RECUSA À TRANSFUSÃO
DE SANGUE NO TRATAMENTO DE SAÚDE POR
PACIENTE TESTEMUNHA DE JEOVÁ
João Quinelato
Sumário: 1. Do paternalismo ao consentimento informado: a autonomia da vontade na relação médico-
-paciente – 2. Um falso dilema: a indisponibilidade da vida vs. A autonomia para autodeterminação. Os
direitos da personalidade e a suposta irrenunciabilidade – 3. A (falsa) colisão de direitos fundamentais
e do equivocado locus privilegiado do direito à vida – 4. A liberdade de escolha religiosa e a objeção de
consciência – 5. Autonomia, capacidade e consentimento em grupos vulneráveis – 6. Síntese conclusiva.
Recente Recurso Extraordinário posto em julgamento no Supremo Tribunal Fe-
deral1 reacendeu os debates a respeito da legitimidade da recusa à transfusão de sangue
no tratamento de saúde por pacientes Testemunha de Jeová, pondo-se a doutrina a
revisitar o tema
Em razão de doença cardíaca, a paciente foi encaminhada pelo Sistema Único de
Saúde (SUS) para o hospital local, a m de realizar cirurgia de substituição de válvula
aórtica. Arma que, por ser testemunha de Jeová, decidiu submeter-se ao tratamento de
saúde sem o uso de transfusões de sangue alogênico (sangue de terceiros), pretendendo
ter resguardado seu direito de autodeterminação com a assunção dos possíveis riscos
de um tratamento médico em detrimento de outro.
A equipe médica teria concordado com seus termos, com emissão de declaração
escrita. Aduziu que, entretanto, a diretoria do hospital teria condicionado a realização da
cirurgia à assinatura de documento de consentimento, por meio do qual a paciente de-
veria conceder autorização prévia para a realização de eventuais transfusões sanguíneas.
Argumenta que, diante da impossibilidade de conceder tal autorização, a administração
do nosocômio cancelou o procedimento cirúrgico.
É nesse contexto que foi ajuizou ação de obrigação de fazer em face dos entes
mantenedores do SUS para obter o tratamento de saúde necessário. Em suas razões, a
paciente arma que sua determinação de se submeter a procedimento médico sem o
uso de transfusões de sangue decorreria da sua consciência religiosa, de modo que a
exigência de consentimento prévio para a realização de transfusões de sangue, como
condição para o seu ingresso no centro cirúrgico, ofenderia a sua dignidade e o seu
direito de acesso à saúde.
A controvérsia, portanto, cinge-se a determinar se a recusa é legítima e deve ser
respeitada, à luz do relevante papel da autonomia da vontade do doente na relação mé-
1. STF, RE 1.212.272/AL, Rel. Min. Gilmar Mendes.
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dico-paciente e, ainda, do candente debate doutrinário e jurisprudencial entre a suposta
indisponibilidade da vida e a autonomia do paciente para autodeterminar-se.
1. DO PATERNALISMO AO CONSENTIMENTO INFORMADO: A
AUTONOMIA DA VONTADE NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE
Similar à relação dos pais com seus lhos, por prolongado período a relação mé-
dico-paciente baseou-se no paternalismo, negando-se ao enfermo o reconhecimento
de sua capacidade para tomada de decisão enquanto pessoa adulta.2 É do Juramento
de Hipócrates que se extrai o suposto modelo ético ideal na relação médico-paciente:
“pelo que respeita à cura dos enfermos, ordenarei a dieta segundo o meu melhor parecer
e manterei afastado deles todo o dano e todo o inconveniente”.
As relações entre médicos e pacientes, assim, fundavam-se no paradigma do pa-
ternalismo médico, em um modelo de completo alijamento do paciente do processo
de tomada das decisões médicas, concebendo-se o paciente não como um sujeito de
direitos, mas, sim, objeto de serviços de saúde.3
O princípio da benecência, consagrado no juramento de Hipócrates, assegurava
que o doente deveria entregar todas as decisões de seu tratamento ao médico, quem se
obrigava a sempre agir sempre agir no interesse do paciente, depositando-se no médico a
sabedoria técnica e moral para tratar a doença da melhor forma possível. O paternalismo
médico, portanto, “legitimava a intervenção do prossional por seus próprios critérios,
ainda que sem a anuência do paciente ou contra sua vontade expressa.4
Foi com o m da Segunda Guerra Mundial que se assistiu à superação do paradigma
do paternalismo, especialmente com a introdução do Código de Nuremberg5 que, em
1947, dispôs a obrigatoriedade do consentimento informado como requisito de valida-
de de experiências médicas, diretrizes posteriormente incorporadas pela Declaração
de Helsinki, editada pela Associação Médica mundial (AMM) em 1964. Em sua mais
recente atualização, realizada pela Associação Médica Mundial em Outubro de 2013,
determinam as diretrizes que “é dever dos médicos que estão envolvidos em pesquisa
médica proteger a vida, a saúde, dignidade, integridade, direito à autodeterminação,
privacidade e condencialidade”, reforçando-se a autodeterminação enquanto princípio
fundante da bioética.6
2. BARBOZ A, Heloisa Helena. A Autonomia da vontade e a relação médico-paciente no Brasil. In: RIBEIRO,
Gustavo Pereira Leite; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado (Org.). Bioética e direitos da pessoa humana. Belo
Horizonte: Del Rey Editora, 2012, p. 55.
3. BINENBOJM, Gustavo. Parecer 09/2009: Direito de recusa de paciente, que se declara Testemunha de Jeová,
quanto ao recebimento de transfusão de sangue. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de
Janeiro, v. 65, p. 299, 2010.
4. BARBOZA, Heloisa Helena. A autonomia da vontade e a relação médico-paciente no Brasil. Lex Medicinae
Revista Portuguesa de Direito da Saúde. 2:7. 2004.
5. PEREIRA, André Gonçalo Dias. Consentimento informado na relação médico-paciente. Coimbra: Coimbra
Editora, 2004, p. 58.
6. A D eclaração de Helsinque é um conjunto de princípios éticos que regem a pesquisa com seres humanos, redigida
pela Associação Médica Mundial em 1964, considerado como importante documento na história da ética em
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