O direito ao esquecimento na sociedade da informação

AutorGuilherme Magalhães Martins
Páginas183-231
O DIREITO AO ESQUECIMENTO
NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO
Guilherme Magalhães Martins
Sumário: 1. Introdução – 2. O direito ao esquecimento como direito fundamental – 3. O direito ao
esquecimento e a sua aplicação na jurisprudência do superior tribunal de justiça – 4. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Na sociedade atual, o armazenamento de informações cresce em proporções
geométricas. O excesso de informações pessoais de fácil acesso pode acarretar graves
danos ao ser humano, na medida em que um pequeno erro do passado pode se tornar
um grave obstáculo para o livre desenvolvimento da personalidade. A (re)divulgação de
fatos pretéritos concernentes a determinado indivíduo pode impedir a autoconstrução
da sua identidade, na medida em que imobiliza o ser humano, negando sua habilidade
de evoluir ao acorrentá-lo ao seu próprio passado.
O tema do direito ao esquecimento foi reconhecido com repercussão social no
Supremo Tribunal Federal, que apreciou o caso Aída Curi.1 nos dias 4, 5 e 11 de fevereiro
de 2021, dando à Tese de Repercussão Geral 786.2 A hipótese demandou a realização
1. O mesmo caso já foi objeto de apreciação pelo Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.335.153), ocasião em que a 4ª
Turma negou direito de indenização aos familiares de Aída Curi, que foi abusada sexualmente e morta em 1958
no Rio de Janeiro. A história desse crime, um dos mais famosos do noticiário policial brasileiro, foi apresentada
no programa Linha Direta com a divulgação do nome da vítima e de fotos reais, o que, segundo seus familiares,
trouxe a lembrança do crime e todo sofrimento que o envolve. Os irmãos da vítima moveram ação contra a
emissora com o objetivo de receber indenização por danos morais, materiais e à imagem. Por maioria de votos,
o Superior Tribunal de Justiça entendeu que, nesse caso, o crime era indissociável do nome da vítima. Isto é, não
era possível que a emissora retratasse essa história omitindo o nome da vítima, a exemplo do que ocorre com
os crimes envolvendo Dorothy Stang e Vladimir Herzog. Segundo os autos, a reportagem só mostrou imagens
originais de Aída uma vez, usando sempre de dramatizações, uma vez que o foco da reportagem foi no crime
e não na vítima. Assim, a Turma decidiu que a divulgação da foto da vítima, mesmo sem consentimento da
família, não congurou abalo moral indenizável. Nesse caso, mesmo reconhecendo que a reportagem trouxe
de volta antigos sentimentos de angústia, revolta e dor diante do crime, que aconteceu quase 60 anos atrás, a
Turma entendeu que o tempo, que se encarregou de tirar o caso da memória do povo, também fez o trabalho
de abrandar seus efeitos sobre a honra e a dignidade dos familiares. O voto condutor também destacou que
um crime, como qualquer fato social, pode entrar para os arquivos da história de uma sociedade para futuras
análises sobre como ela – e o próprio ser humano – evolui ou regride, especialmente no que diz respeito aos
valores éticos e humanitários.
2. “Tema 786 – É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como
o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente
obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no
exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros
constitucionais – especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade
em geral – e as expressas e especícas previsões legais nos âmbitos penal e cível.
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de uma audiência pública, no dia 12 de junho de 2017, sob a coordenação do relator do
Recurso Extraordinário 1010066, Ministro Dias Tooli, ouvindo-se diversos estudio-
sos, de modo a enfrentar todos os aspectos polêmicos e multifacetados envolvendo o
instituto, que, na visão prevalente, consistiria numa espécie de censura ou atentado à
liberdade de expressão.
Três principais posições se destacaram no encontro:3
1. Pró-informação: defendida por entidades ligadas à comunicação, para as quais inexiste um direito
ao esquecimento, por ser tal gura contrária à memória de um povo e à história da sociedade. Como
base para tal entendimento, invoca-se o julgamento do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de
Inconstitucionalidade sobre as biograas não autorizadas – ADI 4.815;
2. Pró-esquecimento: identicam-se com esta corrente os especialistas que defendem a existência
do direito ao esquecimento, armando que este sempre deve preponderar, como expressão do
direito da pessoa humana à reserva, à intimidade e à privacidade, direitos esses que prevaleceriam
sobre a liberdade de informação envolvendo fatos pretéritos, evitando-se, com isso, a aplicação de
penas entendidas como perpétuas, levando à rotulação da pessoa humana pela mídia e pela Inter-
net. Seus defensores se amparam sobretudo no julgamento, pelo Superior Tribunal de Justiça, do
Recurso Especial 1.334.097-RJ, envolvendo a Chacina da Candelária, em que foi aplicado o direito ao
esquecimento, denido como o “direito de não ser lembrado contra a própria vontade”;
3. Intermediária: fundada na ideia de que a Constituição brasileira não permite a hierarquização entre
direitos fundamentais, como a liberdade de informação e o direito ao esquecimento, cabendo, em
cada caso concreto, a ponderação de interesses, para obtenção do menor sacrifício possível. Defen-
sores desta última corrente propuseram que, diante da hipótese de veiculação de programas de TV
com relatos ou encenação de crimes reais, envolvendo pessoas ainda vivas, deveriam ser adotados
parâmetros como o da fama prévia, para distinção entre vítimas que possuem outras projeções sobre
a esfera pública, de um lado, e do outro, aquelas que somente têm projeções públicas na qualidade
de vítimas do delito praticado.
O direito ao esquecimento foi contemplado no artigo 17 do Regulamento EU
2016/79, do Parlamento Europeu e do Conselho, relativo à proteção das pessoas físicas
no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados.
No Brasil, deve ser considerada a edição da Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018,
que dispõe sobre a proteção de dados pessoais e altera a Lei 12.965, de 23 de abril de
2014(Marco Civil da Internet), cujo artigo 18, IV, prevê como direito do titular à “ano-
nimização, bloqueio ou eliminação de dados desnecessários, excessivos ou tratados em
desconformidade com o disposto nesta Lei”.4
3. SCHREIBER, Anderson. As três correntes do direito ao esquecimento. Disponível em : https://www.jota.info/
paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/as-tres-correntes-do-direito-ao-esquecimen-
to-18062017. Acesso em: 20 maio 2020.
4. A anonimização é denida no artigo 5º, XI como “utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis no
momento do tratamento, por meio dos quais um dado perde a possibilidade de associação, direta ou indireta, a
um indivíduo”. Acerca do tema, MARTINS, Guilherme Magalhães; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. A
anonimização de dados pessoais: consequências jurídicas do processo de reversão, a importância da entropia e
sua tutela à luz da Lei Geral de Proteção de Dados. In: DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto; LIMA,
Cintia Rosa Pereira de; MACIEL, Renata Mota. Direito & Internet. São Paulo: Quartier Latin, 2019. v. IV.
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Segundo Stefano Rodotà, em artigo publicado no periódico La Repubblica, trata-
-se do direito de governar a própria memória, para devolver a cada um a possibilidade
de se reinventar, de construir personalidade e identidade, libertando-se da tirania das
jaulas em que uma memória onipresente e total pretende aprisionar tudo(...)A Internet
deve aprender a esquecer, através do caminho de uma memória social seletiva, ligada
ao respeito aos direitos fundamentais da pessoa (tradução livre)”.5
Na imagem do Purgatório da Divina Comédia, de Dante Alighieri, aquele que
desejasse migrar ao céu deveria tomar as águas do Rio Lete a m de puricar-se de seus
pecados. Trata-se de auente mítico presente na epopeia Eneida, de Virgílio, e nomeada
em favor da náiade homônima, lha da deusa da discórdia Eris. Na mitologia greco-ro-
mana, as águas desse rio, provavelmente localizado nos Campos Elíseos, ostentariam o
poder do completo esquecimento de vidas passadas. A memória digital seria compatível
com o seu autogoverno pelo titular?6
O direito fundamental em questão aparece, na língua estrangeira, representado por
múltiplas expressões: right to forget (direito de esquecer), right to be forgotten (direito
de ser esquecido)7 right to be let alone (direito de ser deixado em paz), right to erasure
(direito ao apagamento), right to delete (direito de apagar). Mas a expressão estrangei-
ra que melhor o dene é right to oblivion (direito ao esquecimento). Essa expressão
igualmente predomina em outros países: na Itália, onde se fala em diritto all’oblio; nos
países de língua espanhola, onde é mencionado o derecho al olvido; na França, le droit
à l’oublie. Não se trata do esquecimento fortuito, natural da espécie humana, mas da
perda forçada da memória.8
5. RODOTÀ, Stefano. Daí ricordi ai dati l´oblio è un diritto? La Repubblica.it. Disponível em: http://ricerca.
repubblica/archivio/repubblica/2012/01/30/dai-ricordi-ai-dati-oblio. Acesso em: 21 maio 2020.
6. FACHIN, Luiz Edson. Prefácio; o interrogante autogoverno da própria memória. In: SARLET, Ingo Wolfgang;
FERREIRA NETO, Arthur. O direito ao “esquecimento” na sociedade da informação. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2019 .p. 09-10. Acrescenta Leonardo Parentoni que oblivion deriva do grego Lethe, que designa uma
deusa, lha da discórdia, que uía como um rio no submundo infernal. Acreditava-se que quando uma pessoa
morria e era então conduzida ao inferno, se via forçada a beber a água de Lethe, para que lhe fossem apagadas
quaisquer memórias da vida pregressa. Ou seja, oblivion é a extração forçada da memória. PARENTONI,
Leonardo. O direito ao esquecimento(right to oblivion). In: DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto;
LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. Direito & Internet. São Paulo: Quartier Latin, 2015. v. III, t. I, p. 546.
7. O termo é usualmente empregado para expressar pretensão individual de se libertar das informações já per-
tencentes ao domínio público, mas que com o passar do tempo se tornam descontextualizadas, distorcidas,
ultrapassadas, ou não mais verdadeiras(mas não necessariamente falsas”. KORENHOF, Paulan; AUSLOOS,
Jef; SZEKELY, Ivan; AMBROSE, Meg; SARTOR, Giovanni; LEENES, Ronald. Timing the right to be forgotten:
a study into ‘time’ as a factor in deciding about retention or erasure of data. In: GUTWIRTH, Serge; LEENES,
Ronald; DE HERT, Paul. Reforming European Data Protection Law. Heildelberg: Springer, 2015. p. 172.
8. PARENTONI, Leonardo, op. cit., p. 546. Na visão do autor, se justica a discussão entre a nomenclatura right
to forget ou right to be forgotten, de um lado, e , do outro, right to oblivion: “os dois primeiros designariam qual-
quer remoção de conteúdo que de alguma forma afronte a privacidade, independentemente do meio em que
tenha sido publicado(reportagem impressa, outdoor em via pública, fachadas comerciais, Internet etc.). Por
sua vez, right to oblivion seria uma subespécie do gênero anterior, cujo objeto restringir-se-ia, exclusivamente,
ao tratamento informatizado de dados pessoais. Ou seja, o right to oblivion seria a modalidade contemporânea
desse direito, surgida em virtude do desenvolvimento tecnológico, estando contido na modalidade clássica,
existente há mais de um século e conhecida como right to forget, right to be forgotten ou right to be let alone”.
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