O jurista na sociedade pós-moderna: resgate da importância da técnica jurídica na interpretação (qualificação) e na aplicação do direito civil à luz do paradigma do neoconstitucionalismo

AutorFrederico Price Grechi
Páginas277-310
O JURISTA NA SOCIEDADE PÓS-MODERNA:
RESGATE DA IMPORTÂNCIA DA TÉCNICA
JURÍDICA NA INTERPRETAÇÃO (QUALIFICAÇÃO)
E NA APLICAÇÃO DO DIREITO CIVIL À LUZ DO
PARADIGMA DO NEOCONSTITUCIONALISMO
Frederico Price Grechi
Sumário: 1. Introito – 2. Evolução do sentido e alcance da expressão jurista no direito – 3. Pós-moder-
nidade, pós-positivismo e o paradigma do neoconstitucionalismo – 4. O resgate da técnica jurídica na
fundamentação adequada dos pronunciamentos judiciais e administrativos – 5. Conclusão.
“Pero es preferible hablar del jurista social, porque en su formación, si bien puede inuir – y mucho
– las directivas de la ensenanza universitária, sobre todo la sugestión de los maestros, es indudable
que sólo después de egresado, y sólo después de conocer la vida del derecho en la prática, en la
justicia y la política – no en la literatura ni en la reputación formal – sólo entonces puede avivarse esa
bra jurídica del abogado, ese sentimento de justicia distributiva” (BIELSA, Rafael. La Abogacía, 2. ed.
Buenos Aires: Universidad Nacional de Litoral – Santa Fé, 1945, p. 17).
“A percepção atual das modicações em curso passa pela consciência da própria tarefa da ciência do
direito. Isso representa dizer que não se entende que a abolição da dogmática do direito esteja em
processamento, mas que esteja em processamento uma modicação cultural necessária, para tornar a
dogmática do direito uma prática cientíca mais anada com necessidades sociais e menos amparada
por concepções conceitualistas ou formalistas, típicas manifestações do positivismo novecentista,
que realizava em ciência a ideia de ordem e progresso na dimensão do conhecimento das regras de
Estado e de direito”. (BITTAR, Eduardo C. B. O direito na pós-modernidade e reexões frankfurtianas. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 372-373).
1. INTROITO
É um privilégio participarmos desta obra coletiva, a prestar justa homenagem à
culta e estimada Professora Heloisa Helena Barboza, a qual investigou, pioneiramen-
te, a relação entre a bioética e o biodireito, a concluir pela insuciência dos conceitos
jurídicos1 e, portanto, a revelar inexoravelmente a incompletude do sistema jurídico.2
1. BARBOZA, Heloisa Helena. Bioética x Biodireito: insuciência dos conceitos jurídicos. In: BARBOZA, Heloisa
Helena e BARRETO, Vicente de Paulo (Org.). Temas de Biodireito e Bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
2. A propósito das novas tendências da responsabilidade civil e do necessário diálogo entre a bioética e o biodi-
reito para preenchimento das lacunas do sistema jurídico, consulte-se, por todos, BARBOZA, Heloisa Helena.
Responsabilidade civil em face das pesquisas em seres humanos: efeitos do consentimento livre e esclarecido.
In: MARTINS-COSTA, Judith e MÖLLER, Letícia Ludwig (Org.). Bioética e responsabilidade. Rio de Janeiro:
Forense, 2009, p. 227-228: “O desrespeito à autonomia do paciente produz efeitos similares no campo da Bioética
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Deveras, o sistema jurídico deve desempenhar duas qualidades: a abertura e a
mobilidade. Para Claus-Wilhelm Canaris entende por abertura do sistema a incom-
pletude, a capacidade e a modicabilidade do sistema.3 A abertura do sistema signica
a incompletude e a provisoriedade do conhecimento cientíco, na medida em que este
revela o estado dos conhecimentos do seu tempo, que não é denitivo, isto é, fechado.
Em matéria jurídica, as modicações na unidade da ordem jurídica (sistema objetivo)
ocorrem a partir do surgimento de novos valores fundamentais. Por isso é que o sistema
não é estático e sim dinâmico, eis que deve ser compreendido como um fenômeno posto
no processo histórico e, por conseguinte, sujeito à mutação. A mobilidade, que não se
confunde com a abertura, signica a igualdade fundamental de categoria e a mútua
substitutibilidade dos critérios adequados de justiça. Por outro lado, a qualidade de
mobilidade do sistema jurídica não é absoluta, haja vista que este é composto por partes
imóveis e móveis. As partes imóveis, reetidas em uma rigidez normativa cuja valoração
é previamente preenchida, visam realizar, em última instância, o valor segurança em
uma perspectiva de generalidade.
Já as partes móveis são reveladas pelas cláusulas gerais (tecido aberto),4 as quais
deverão ser preenchidas com as valorações de acordo com as circunstâncias do caso
concreto, com vistas à realização da justiça individualizada, resultante do princípio da
igualdade.5
Os princípios ético-jurídicos, como critérios teleológicos-objetivos da interpretação
são também conectores das partes móveis e imóveis do sistema jurídico, conferindo-lhe
unidade. De outra feita, os princípios não atuam como uma norma rígida, os quais se
pudessem subsumir situações de fato, de aplicação geral. Segundo Karl Larenz, os prin-
cípios podem ser distinguidos em diferentes graus de concretização. Em sua gradação
mais elevada, traduzem uma ideia jurídica geral, pela qual se orienta a concretização
posterior como por um o condutor.6
Além da importância dos princípios ético-jurídicos na conexão do sistema jurí-
dico, insta salientar a relevância da técnica jurídica (v.g., lógica interna das instituições
jurídicas, categorias, conceitos, presunções, cções etc.)7 que também integra a ativi-
e do Biodireito. Para a Bioética haverá violação de um dever ético, que anteriormente afetava apenas o campo
moral, mas atualmente se traduz em reprovação social, a qual aciona os instrumentos de controle social. Em
alguns casos, haverá também implicações disciplinares e administrativas para o médico. Para o Biodireito, além
dessas implicações, o médico terá violado um direito do paciente, descumprindo seu dever, sujeitando-se à
responsabilização civil e, dependendo do caso, também pena e administrativa”.
3. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do Direito. 2. ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 66-81.
4. ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 8. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p.
231-233.
5. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do Direito. 2. ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 127-148.
6. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 674.
7. TOBENAS, José Castán. Teoría de la Aplicación e Investigación del Derecho. Madrid: Editorial Reus, 2005, p. 52:
“Mas como judiciosamente observa el professor LEGAZ, ‘la distinción entre dogmática y técnica jurídica no
puede interpretarse como distinción entre ciencia y técnica, sino que una y outra se integran como momentos
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dade interpretativa pelo jurista (prossional do Direito), realizada conjuntamente com
a qualicação do fato,8 seguida9 da aplicação do direito no caso concreto.10
Pietro Perlingieiri, com razão, sugere “a interpretação e qualicação do fato
como fases de um procedimento unitário”; “qualicação e a interpretação fazer parte
de um procedimento unitário orientado a reconstruir aquilo que aconteceu em uma
perspectiva dinâmica, voltado não ao passado, mas à fase de atuação. Portanto, in-
terpretação e qualicação do ato devem ser realizadas em forma evolutiva.11 Ainda
segundo Pietro Perlingieiri, “o procedimento de conhecimento do ato não pode pres-
cindir da valoração, da sua tipicação. Isso não implica a prioridade da qualicação
sobre a interpretação, mas signica que a interpretação e qualicação são aspectos de
uma operação unitária”.12 Nesse contexto, “a doutrina mais atenta demonstrou que o
procedimento de interpretação varia de acordo com o objeto a ser interpretado, de
acordo com o tipo do ato. A natureza diversa do objeto deve incidir sobre a técnica da
interpretação, e isso equivale a dizer que interpretação e qualicação devem proceder
sem distinções dos momentos lógicos ou cronológicos. A qualicação, de resto, pelo
dialécticos de la ciencia jurídica. Cada problema jurídico concreto, cada institución jurídica, em tanto que objeto
de la ciencia del Derecho, tiene su dimensión dogmática y su dimensión técnica”. LARROUMET, Christian.
Derecho Civil. Introducción al estúdio del derecho privado. Primera edición en espanhol, Bogotá/Colômbia: Legis
Editores S.A., 2006, p. 90: “El jurista es, además, de humanista, técnico. El jurista debe saber manejar los conceptos
del derecho, las categorías en las que se clasican las instituciones y los instrumentos que la norma consagra; debe
saber praticar el razonamiento jurídico. El derecho es una construcción lógica”. GOMES, Orlando. Introdução
ao Direito Civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 11: “… o Direito realiza-se mediante processos técnicos
Os mais importantes são: a) os conceitos; b) as categorias; c) as construções; d) as cções; e) as presunções”.
8. PERLINGIERI, Pietro. Pers do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. Trad. Maria Cristina
De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 100-102.
9. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 295-296: “Interpretação,
integração e aplicação são três termos técnicos que correspondem a três conceitos distintos, que às vezes se
confundem, em virtude de sua íntima correlação. (...) A aplicação é um modo de exercício que está condicionado
por uma prévia escolha, de natureza axiológica, entre várias interpretações possíveis. Antes da aplicação não
pode deixar de haver interpretação, mesmo quando a norma legal é clara, pois a clareza só pode ser reconhecida
graças ao ato interpretativo. Ademais, é óbvio que só aplica bem o Direito quem o interpreta bem”.
10. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 6-9: “A
aplicação do Direito consiste no enquadrar um caso concreto em a norma jurídica adequada. (...) Vericado
o fato e todas as circunstâncias respectivas, indaga-se a que tipo jurídico pertence. (...) Busca-se, em primeiro
lugar, o grupo de tipos jurídicos que se parecem, de um modo geral, com o fato sujeito a exame; reduz-se depois
a investigação aos que revelam semelhança evidente, mais aproximada, por maior número de faces; o último
na série gradativa, o que se equipara, mais ou menos, ao caso proposto, será o dispositivo colimado. Portanto,
depois de vericar em que ramo do Direito se encontra a solução do problema forense em foco, o aplicador desce
às prescrições especiais. (...) Para atingir, pois, o escopo de todo o Direito objetivo é força examinar: a) a norma
em sua essência, conteúdo e alcance (quaestio juris, no sentido estrito); b) o caso concreto e suas circunstâncias
(quaestio facti); c) a adaptação do preceito à hipótese em apreço. As circunstâncias do fato são estabelecidas
mediante o exame do mesmo, isolado, a princípio, considerado em relação ao ambiente social, depois: procede-se,
também, ao estudo da Prova em sua grande variedade (depoimento das partes, testemunhos, instrumentos etc.);
não se olvidem sequer as presunções do Direito (praesumptiones juris et de jure). (...) A Aplicação não prescinde
da Hermenêutica: a primeira pressupõe a segunda, como a medicação a diagnose.
11. PERLINGIERI, Pietro. Pers do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. Trad. Maria Cristina
De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 100-102.
12. PERLINGIERI, Pietro. Pers do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. Trad. Maria Cristina
De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 102.
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