A denúncia anônima na proteção dos direitos fundamentais no brasil

AutorMorton Luiz Faria de Medeiros
Ocupação do AutorÉ Doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba 2016, tendo obtido os títulos de Bacharel 1998, Especialista 2001 e Mestre 2005 em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Páginas127-190
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A DENÚNCIA ANÔNIMA NA PROTEÇÃO
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL
Uma vez que a utilização da denúncia anônima, como visto nos capí-
tulos anteriores, tem sido ora repelida por atentar contra certos direi-
tos fundamentais, ora louvada por possibilitar a proteção de outros,
impõe-se, inicialmente, proceder a sua caracterização como direito, a partir de
uma abordagem analítica preliminar acerca da distinção entre direitos humanos
e direitos fundamentais (termos habitualmente confundidos), a m de justicar
a opção linguística adotada neste trabalho, para então avaliar os contornos da
denúncia anônima no âmbito da teoria dos direitos fundamentais e, em seguida,
estabelecer os cuidados a serem levados em conta quanto a sua utilização no
procedimento investigatório de práticas ilícitas. Com esse desiderato, este ca-
pítulo é erigido no âmbito da dimensão normativa da dogmática jurídica, por
dizer respeito, na exata compreensão de Alexy (2014, p. 35), “[...] à elucidação e
à crítica da práxis jurídica, sobretudo da práxis jurisprudencial”, mais especica-
mente a do Supremo Tribunal Federal, pelas razões já declinadas (v. 2.1 acima).
3.1 ALICERCES TEÓRICOS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
O surgimento de verdadeira teoria dos direitos humanos não é identi-
cado historicamente de forma uníssona pelos pesquisadores. É certo, porém,
que nas sociedades primitivas não há sentido em falar em doutrina de direitos
humanos, já que, até então, os membros da comunidade que de fato interagiam
entre si gozavam de ancestralidade, religião e crenças comuns, tornando despi-
cienda a construção jurídica para corroborar o que não era objeto de discussão
– a humanidade partilhada.
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MORTON LUIZ FARIA DE MEDEIROS
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Contudo, à medida que o mundo foi parecendo cada vez menor, diante do
estreitamento das barreiras físicas e virtuais entre os homens, nasceu a neces-
sidade de maior proteção e tolerância das diferenças entre estes, sob a alegação
de que essas distinções não seriam essenciais – o importante era gozar do atri-
buto de ser humano. Nesse sentido é que Aristóteles (1985, p. 18)1 engendra
uma antropologia universalista, segundo a qual armava a existência da na-
tureza comum entre todos os homens, mesmo entre senhores e escravos, haja
vista considerar estes últimos seres humanos, só que pertencentes por natureza
não a si mesmos, mas àqueles (também humanos) – argumento manejado por
ele, por exemplo, para combater a escravidão decorrente de guerra, conquista
ou dinheiro, ainda que servisse, por outro lado, para justicar aquela que satis-
zesse os interesses “comuns” de senhor e escravo.
Note-se, porém, que não se trata, ainda, de teoria jurídica, e sim de antro-
pologia, mesmo porque o Direito não constituía grande preocupação dos pen-
sadores da Grécia Antiga. Com efeito, mesmo o universalismo das “normas
divinas, não escritas, inevitáveis”, invocadas por Antígona para se justicar
perante Creonte (SÓFOCLES, 1990a, p. 219)2, qualicava, a rigor, uma impo-
sição moral – e não jurídica – apontando, assim, para a moral universal, antes
que para o Direito universal (VILLEY, 2007, p. 87). Isso porque nem a própria
ideia de direito subjetivo, crucial para a compreensão de uma teoria jurídica, é
construção da Antiguidade, já que mesmo o dominium romano, apontado pela
Escolástica como a fonte dos direitos humanos, não constituía direito indivi-
dual, conforme defendido por Villey (2007, p. 146).
Este autor, aliás, pelas razões acima mencionadas, não apenas se contrapõe
à ideia de que o Catolicismo tenha sido “[...] o berço dos direitos humanos
(VILLEY, 2007, p. 136), como também denuncia que tais direitos, na verdade,
são historicamente obra de não-juristas (VILLEY, 2007, p. 144)! Daí uma ver-
dadeira doutrina dos direitos humanos só haver nascido, no Ocidente, com o
individualismo burguês engendrado a partir do Renascimento (PERELMAN,
2005, p. 406), e, de forma geral, deriva da losoa moderna edicada a partir
do século XVII (VILLEY, 2007, p. 137)3. É apresentada, precisamente, como
1 Na tradicional citação dos textos gregos antigos: Política, I, 1254a.
2 Na tradicional citação dos textos gregos antigos: Antígona, 417 e 418.
3 Não por acaso, a noção de direitos humanos nasceu apartada da de cidadania, exercida
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remédio para as divisões, separações entre os seres humanos, intensicadas
com a eclosão das revoluções liberais a partir de então – embora a noção de
direito subjetivo só apareça, segundo Villey (2007, p. 69), por obra dos pan-
dectistas alemães do século XIX, o que permite inferir que sequer se tratavam
os proclamados “direitos humanos”, antes disso, de verdadeiros direitos subje-
tivos oponíveis ao Estado. Sintomática dessa precariedade é a constatação de
que uma das principais críticas dirigidas ao texto original da Constituição dos
Estados Unidos foi a de que não possuía uma declaração de direitos4 (SORTO,
1996, p. 138-139) – o que começou a ser remediado já a partir da Primeira
Emenda à Constituição, que compõe, junto com as nove seguintes, aquilo que
se convencionou chamar Bill of rights.
Ao lado da expressão direitos humanos, porém, começou a se disseminar o
uso da locução direitos fundamentais5, a partir da Constituição alemã de Wei-
mar (1919), “[...] para referir-se a direitos positivados e garantidos nas cons-
tituições estatais” (NEVES, 2009, p. 250) – o que justica, em certa medida,
a razão de sua predileção entre os publicistas alemães, ao passo que direitos
humanos é mais frequente entre autores anglo-americanos e latinos (BONAVI-
DES, 2006, p. 560). A diferença entre tais expressões, portanto, como apontado
por Neves (2009, p. 253), reside no âmbito de suas pretensões de validade: os
direitos humanos pretendem valer para qualquer ordem jurídica existente na
apenas pelos membros de determinada coletividade política e, mais precisamente, de um
Estado (NEVES, 2009, p. 249) – assim é que a comentada Declaração de 1789 pretendia
tutelar homens e cidadãos, apresentados como categorias distintas, não confundíveis, bem
ao gosto da burguesia vicejante da época.
4 Segundo Silva Júnior (2008, p. 177), a tese de que a Constituição norte-americana não
deveria abrigar, em princípio, declaração de direitos fundamentais acabou por prevalecer
sob o argumento de que “[...] a missão conada à Convenção de Filadéla se circunscrevia
à reorganização política dos Estados Unidos e, ainda, o argumento de que a matéria
pertinente aos direitos dos cidadãos já era objeto de regulamentação nas constituições
estaduais, pelo que não havia motivo para a sua reiteração.
5 No Brasil, somente a partir da Constituição de 1988 passou-se a adotar, no texto
constitucional, a expressão direitos fundamentais. Deveras, a Constituição imperial de 1824
previa as “garantias dos direitos civis e políticos” (Título 8.º), e a primeira Constituição
republicana, promulgada em 1891, dedicava a Seção II do Título IV à “declaração de direitos”,
nomenclatura seguida, posteriormente, pela Constituição de 1934 (Título VIII, com a
particularidade de fazer menção expressa aos deveres), Constituição de 1946 (Título IV) e
Constituição de 1967 (Título II, nesse ponto não modicada pela Emenda Constitucional
n.º 1, de 17 de outubro de 1969). A Carta de 1937, por seu turno, demonstrou a opção por
“direitos e garantias individuais” (artigos 122 e 123).
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