Teoria geral da denúncia anônima

AutorMorton Luiz Faria de Medeiros
Ocupação do AutorÉ Doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba 2016, tendo obtido os títulos de Bacharel 1998, Especialista 2001 e Mestre 2005 em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Páginas7-77
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TEORIA GERAL DA DENÚNCIA ANÔNIMA
A
carência de aprofundamento monográco do papel processual do
anonimato era reconhecida por Corso (1977, p. 3) há quarenta anos,
mas a falta de doutrina sistematizada sobre a denúncia anônima
continua sendo apontada, muito depois, por Delgado (1999, p. 15) e Souza
(2013, p. 16). Pelino (2008, p. 32), por seu turno, considera, especicamente
sobre o conceito de anonimato, não haver ainda um “estado da arte” elabo-
rado e testado por onde principiar1. Ainda assim, as poucas obras jurídicas
especícas destinadas à pesquisa da denúncia anônima iniciam por análises
genéricas das teorias de direitos humanos ou fundamentais (a que se de-
dica o tópico 3.1 abaixo), constatação que inspira a opção, neste livro, por
inaugurar o cumprimento de seus objetivos a partir do enfrentamento da
dimensão analítica especíca do problema suscitado, o que signica, na sis-
temática proposta por Alexy (2014, p. 33), a análise de conceitos elementares
à compreensão da denúncia anônima e de seu posicionamento no Estado
constitucional democrático.
Cumpre observar, ainda, que, apesar de não se poder considerar verdadei-
ra teoria do direito a construção argumentativa que não se ocupe do processo
decisório judicial e de seus métodos (MARTINS, 2012, p. 8), essa preocupação
será enfrentada apenas, por razões didáticas, nos dois capítulos subsequentes
a este, o qual se limitará ao cumprimento do primeiro objetivo especíco de-
clinado na Introdução.
1 No original, ao se referir aos signicados de anônimo e de anonimato: “[…] in eetti non
può dirsi che esista al momento uno stato dell’arte elaborato e collaudato da cui prendere le
m o s s e”.
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MORTON LUIZ FARIA DE MEDEIROS
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1.1 CARACTERIZAÇÃO DA DENÚNCIA ANÔNIMA
Para cumprir os objetivos desta obra, impõe-se investigar os registros his-
tóricos da ocorrência da denúncia anônima, no afã de contextualizar seu sur-
gimento e melhor compreender eventuais mudanças de tratamento pelos or-
denamentos jurídicos pesquisados. Ademais, malgrado se reconheça que um
conceito mais acabado de denúncia anônima só poderá ser concluído ao nal
deste trabalho, é mister identicar algumas de suas características, notada-
mente opções linguísticas, distinções e assimilações necessárias, para permitir
que se possa desenvolver, posteriormente, análise mais detalhada de sua com-
patibilidade com a democracia – não apenas a partir de enunciação completa
do que é, como também procurando assentar o que não é a denúncia anônima.
Nesse caminho, será enfrentado problema que acomete o Direito de forma
geral: a “[...] relativa escassez de textos produzidos por juristas historiadores
especicamente dedicados ao exame” das ideias penais (FREITAS, R., 2012b,
p. 460), o que acaba por afetar a historiograa da denúncia anônima – como
fruto de atitudes inicialmente relacionadas à persecução penal – de maneira
até mais contundente, haja vista sua especicidade. Assim, os aparentes “sal-
tos” históricos eventualmente percebidos no tópico que segue não são decor-
rência de descuido metódico, e sim da carência de registros seguros acerca
dessa matéria particular na produção cientíca do Direito.
1.1.1 Origem da denúncia anônima
Cumprindo o Direito a função de disciplinar as condutas dos homens con-
viventes em uma sociedade, com vistas à constituição de ordem social estável
e harmônica, junto a ele ganha relevo a denição de ilícito, desde que este,
nas sociedades primitivas, se confundia com a quebra da tradição, sanciona-
da com a “vingança dos deuses” (WOLKMER, 2010, p. 4). A delimitação das
condutas ilícitas, portanto, faz nascer a preocupação em combatê-las, a partir
de sua apreciação por pessoa ou órgão competente para garantir a manutenção
da ordem – mas sem que se entenda o ilícito como “[...] a representação de
algo que está fora do Direito e contra ele, que ameaça, interrompe ou mesmo
suprime a existência do Direito, e sim como seu pressuposto (KELSEN, 2009,
p. 126). Desde que o ser humano, historicamente, começa a delegar a ente po-
lítico tal responsabilidade, a partir da imposição de se exigir o lícito e reprimir
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DENÚNCIA ANÔNIMA: INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL
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o ilícito, vislumbra-se o nascimento do Direito como instrumento de justica-
ção da força de que esse ente se vale para realçar a bilateralidade atributiva que
caracteriza a ordem jurídica, na medida em que determina a relação objetiva
com seu povo e engendra garantia para as consequências dessa relação.
Nesse longo processo de “descoberta” e vivência do Direito, muitas tentati-
vas foram envidadas para implementar o suum cuique tribuere a que se referia
Ulpiano nas Institutas e que, até hoje, inspira as diversas teorias de justiça de-
senvolvidas pelos jurisconsultos. Uma delas partiu do estímulo, de iniciativa
do detentor do poder, ao seu povo para que colaborasse com a ordem estabele-
cida, apontando os inéis que pretendessem subverter tal ordem.
Já na Antiguidade Clássica, os gregos concederam àqueles que denunciassem
alguma irregularidade, com vistas a coibir a corrupção, parte do valor arrecada-
do a partir da condenação imposta ao réu, gerando grande número de denúncias
sem fundamento (cujos autores foram chamados de sicofantas), contra as quais
se erigiu a regra de que, “[...] se no curso do processo o denunciante não obtives-
se pelo menos 1/5 dos votos do tribunal, estava sujeito a uma multa” (AGUIAR;
MACIEL, 2010, p. 72). O hábito de premiar o delator está, inclusive, registrado
no teatro de Sófocles (1990b, p. 28)2, na passagem em que Édipo oferece a quem
soubesse a autoria do assassinato do Rei Laio “generosa recompensa, acrescido
de sua gratidão. Em Roma, um de seus historiadores, o Senador Tacitus (2014)
aludiu a diversos acontecimentos que envolviam fatos levados ao conhecimento
do soberano pela ação de informantes, o que, segundo ele, aumentava o número
de pessoas ameaçadas3, pois eles constituíam classe inventada para destruir a
República, já que, não sendo sucientemente controlados pelas sanções penais,
eram estimulados com recompensas, a ponto de ser proposto no Senado moção
para privar os informantes de tais recompensas nos casos em que pessoa acusada
2 Na tradicional citação dos textos gregos antigos, comumente usada para a localização das
passagens em qualquer edição ou língua dessas obras: Édipo Rei, 269 a 272.
3 No original: “[…] there was an increase in the number of persons imperilled, for every
household was undermined by the insinuations of informers” […]. In consequence of the
suicide of Cornutus, it was proposed to deprive informers of their rewards whenever a person
accused of treason put an end to his life by his own act before the completion of the trial. e
motion was on the point of being carried when the emperor, with a harshness contrary to
his manner, spoke openly for the informers, complaining that the laws would be ineective,
and the State brought to the verge of ruin. ‘Better,’ he said, ‘to subvert the constitution than to
remove its guardians.’ us the informers, a class invented to destroy the commonwealth, and
never enough controlled even by legal penalties, were stimulated by rewards.”
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