Dilemas bioéticos e jurídicos nos cuidados paliativos pediátricos oncológicos

AutorAnnick Beaugrand, Erica Boldrini, Juliana Lyra, Juliana Martins de Mattos Gonnelli, Lizana Arend Henrique
Ocupação do AutorProfessora do Departamento de Pediatria na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). / Doutora e Mestre pela Universidade de São Paulo (USP)Médica Oncologista Pediátrica do Hospital de Amor Infantojuvenil de Barretos, com área de atuação em Medicina Paliativa e Medicina da Dor pela Academia Médica Brasileira (AMB). / Assistente Social...
Páginas149-180
DILEMAS BIOÉTICOS E JURÍDICOS NOS
CUIDADOS PALIATIVOS PEDIÁTRICOS
ONCOLÓGICOS
Annick Beaugrand
Professora do Departamento de Pediatria na Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN). Médica Oncologista Pediátrica, com especialização no Instituto
Gustave Roussy – França;atualmente atuando na Liga contra o câncer – Natal/RN.
Erica Boldrini
Doutora e Mestre pela Universidade de São Paulo (USP)Médica Oncologista
Pediátrica do Hospital de Amor Infantojuvenil de Barretos, com área de atuação
em Medicina Paliativa e Medicina da Dor pela Academia Médica Brasileira (AMB).
Juliana Lyra
Assistente Social graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com
formação em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium Latinoamerica (Argen-
tina). Assistente social do Setor de Oncohematologia pediátrica do Hospital
Federal dos Servidores do Estado (HFSE). Assistente social do Setor de Doenças
Infecto Parasitárias do Instituto Estadual de Infectologia São Sebastião (IEISS).
Juliana de Mattos
Psicóloga graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com pós-gradua-
ção em Cuidados Paliativos pelo Hospital Sírio Libanês e pós-graduação em Psico-
-oncologia pela FCMMG. Especialista em Psicologia Hospitalar (CFP). Psicóloga do
Serviço de Psicologia Médica do HFSE, referenciada no Setor de Oncohematologia
pediátrica. Membro da Rede Brasileira de Cuidados Paliativos Pediátricos.
Lizana Arend Henrique
Médica Oncologista Pediátrica, com área de atuação em Medicina Paliativa pela
AMB. Mestre em Saúde Pública pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Médica paliativista do Serviço de Oncohematologia pediátrica do Hospi-
tal Infantil Joana de Gusmão, Florianópolis SC.Membro do Comitê de Medicina
Paliativa do Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina.
Sumário: 1. A história de Melissa – 2. Dilemas bioéticos presentes no caso; 2.1 Recusa do tra-
tamento por crença religiosa versus dever do Estado na proteção da criança e do adolescente;
2.2 Paternalismo versus cuidado centrado na pessoa; 2.3 Comunicação de más notícias versus
impactos na adesão nas diversas fases do tratamento; 2.4 Construindo pontes: a necessidade
de continuidade na assistência ao adolescente versus fragmentação do cuidadoe o nal de vida
– 3. Diretivas antecipadas versus obstinaçãoterapêutica – 4. Considerações nais – Referências.
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BEAUGRAND, MATTOS, LYRA, GONNELLI E HENRIQUE
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1. A HISTÓRIA DE MELISSA
Melissa, uma adolescente de 14 anos, após apresentar dores na perna es-
querda e buscar atendimento em saúde, foi diagnosticada com osteossarcoma,
um tumor ósseo maligno e agressivo. Seus pais, muito religiosos, acreditam que
Melissa seria curada por Deus e não cumprem com a recomendação da equipe
da ortopedia - que realizou o diagnóstico no hospital próximo de sua residência,
numa cidade do interior de seu Estado – de comparecer à consulta agendada no
serviço de referência em oncologia pediátrica.
Decorrido um ano do diagnóstico, devido a intensa dor no local do tumor
que dicultava locomoção, seus pais procuraram o serviço de oncologia pediá-
trica com Melissa.
Melissa divide sua rotina com os pais, dois irmãos mais velhos (uma ado-
lescente de 16 anos e um jovem de 18 anos) e um irmão de 1 ano de idade. Nas
primeiras consultas, a paciente parece compreender a necessidade do tratamento,
mas faz um pedido: que a deixem comemorar seu aniversário de 15 anos, sem falar
em doença ou tratamento, prometendo retornar para a realização da terapêutica
proposta (quimioterapia e cirurgia). A equipe médica adverte sobre os riscos re-
lacionados ao atraso, mas concorda com o adiamento na tentativa de estabelecer
um vínculo, considerando que o atraso seria de apenas 2 semanas. Realizada a
festa, Melissa volta ao serviço de oncologia pediátrica para iniciar seu tratamento.
O pai trabalha como auxiliar de serviços gerais e, sendo o único provedor
da família, sócomparece a algumas consultas ambulatoriais, quando convocado
pela equipe. Durante as internações, seus irmãos se revezam como acompanhan-
tes, já que sua mãe decide por car com o lho mais novo e nunca se pronticou
a acompanhá-la. Melissa é bastante reservada e de poucas palavras, mas toma
todas as decisões de seu tratamento, sempre com a anuência de seus pais. Em seu
discurso, a certeza de uma cura milagrosa continuapresente, onde a equipe de
saúde atua como ferramenta divina e suas decisões são sempre baseadas naquilo
que compreende como resposta de Deus.
Após completar três meses de quimioterapia, e aproximado o tempo para a cirur-
gia, a equipe assistente conversa com Melissa e a família, mas a paciente não concorda
em se submeter a uma cirurgia para amputação da perna. Diante das advertências da
equipe de oncologia, foi solicitado parecer à equipe consultora em Cuidados Paliativos
que realizou conferência familiar acolhendo a recusa da paciente.
Decidido pela continuidade do tratamento quimioterápico e completados os
ciclos propostos, adolescente apresenta melhora signicativa da doença e mantém
a certeza de que será curada por Deus e apresentará seu testemunho na igreja que
frequenta com sua família.
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DILEMAS BIOÉTICOS E JURÍDICOS NOS CUIDADOS PALIATIVOS PEDIÁTRICOS ONCOLÓGICOS
Aos 17 anos, os sintomas se intensicam demonstrando progressão da do-
ença na perna e pulmão. Neste momento, a proposta terapêutica consiste em uma
amputação do membro inferior esquerdo na altura da bacia e, posteriormente, na
ressecção das metástases pulmonares. Diante das dores incontroláveis, em nova
conferência familiar realizada, Melissa revê conceitos e admite que acreditava
na cura inicial total pela sua convicção religiosa, assim como seus pais. Agora
entende que Deus quer que ela vivencie o caminho mais difícil e, para a surpresa
da equipe, aceita desta vez realizar a cirurgia de desarticulação.
Melissa realiza ambas as intervenções, a desarticulação da perna e a retirada
das metástases pulmonares, com recuperação surpreendente e permanece bem
e adaptada à nova condição, mantendo seguimento ambulatorial irregular com
equipe de oncologia pediátrica e de cuidados paliativos. Nas consultas, traz preo-
cupações com relação a nitude (morte próximo de casa, pois família continuava
morando no interior do Estado, e medo de que suas vontades não fossem respei-
tadas). Neste ínterim, a equipe de cuidados paliativos faz o registro das diretivas
antecipadas de vontade em prontuário médico e realiza nova conferência familiar
para informação à família (pais, irmãos e namorado).
Com 19 anos, Melissa interna em franca insuciência respiratória pela pro-
gressão das metástases pulmonares, desta vez no serviço de clínica médica (visto
que já completou 18 anos). Sem possibilidades de tratamento curativo segue em
cuidados paliativos plenos, apesar das objeções do namorado que acredita ser
possível fazer mais quimioterapia. Neste momento, Melissa reete sobre todo o
processo de sua doença, as decisões que tomou, ressignicando tudo que havia
acontecido. Não se arrepende de suas escolhas, e arma que se sentiu acolhida e
respeitada durante todo o processo.
2. DILEMAS BIOÉTICOS PRESENTES NO CASO
2.1 Recusa do tratamento por crença religiosa versus dever do Estado
na proteção da criança e do adolescente
O diagnóstico de uma doença grave e ameaçadora da vida provoca senti-
mentos intensos e dolorosos, principalmente quando o paciente é uma criança
ou um adolescente. Os pais se percebem com uma dor nunca antes imaginada
que é da possibilidade da perda antinatural de um lho, que envolve expectativas,
planos e projetos futuros. Estudos mostram que comunicar más notícias é uma
tarefa difícil para os prossionais de saúde e essa tarefa torna-se ainda mais difícil
quando o paciente é pediátrico.1
1. PERINA, Elisa Maria.; RUBIO, Andreza Viviane. Comunicação de Más Notícias para a Criança e o
Adolescente. In: LIMA E SOUZA, Jussara de.; RUBIO, Andreza Viviane (Org.). Cuidado paliativo:
pediátrico e perinatal. Rio de Janeiro: Atheneu, 2019.p. 59-76.
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