O direito fundamental ao conteúdo do próprio trabalho: uma reconstrução normativa do direito ao trabalho como mediação da dignidade humana

AutorLeonardo Vieira Wandelli
Páginas54-69
CAPÍTULO 3
(1) Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná. DEA em Derechos Humanos y Desarrollo pela Universidade Pablo de Olavide
de Sevilla. Líder do Grupo de Pesquisa Trabalho e Regulação no Estado Constitucional. Consultant Contractor do OHCHR Office of the High
Commissioner for Human Rights– UM. Professor de cursos de Pós-Graduação e de formação de magistrados. Gestor Nacional do Programa
Trabalho Seguro do TST/CSJT. Juiz do Trabalho no Paraná.
O Direito Fundamental ao Conteúdo do Próprio Trabalho:
Uma Reconstrução Normativa do Direito
ao Trabalho como Mediação da Dignidade Humana
LEONARDO VIEIRA WANDELLI
(1)
Resumo: As transformações impostas ao mundo do trabalho pela deriva neoliberal têm degradado não só as condições de com-
pra e venda da força de trabalho, mas especialmente as condições existenciais, ou seja, a vida por meio do trabalho, especialmente
ao corromperem o sentido e o conteúdo do trabalho. Do ponto de vista jurídico, trata-se de um aprofundamento do histórico
descumprimento do direito ao trabalho. Frente a isso, pretende-se enfrentar a inefetividade do direito humano e fundamental ao
trabalho a partir de um esforço de reconstrução normativa da sua fundamentação, apoiada em um duplo pilar teórico, nas teorias
das necessidades e nas teorias do reconhecimento. Com isso, busca-se não somente recuperar a importância do vínculo entre
trabalho e dignidade humana, como especialmente explicitar aspectos essenciais da centralidade do trabalho para os sujeitos,
propiciando-se uma compreensão constitucionalmente adequada do seu conteúdo normativo. O direito ao trabalho se desvela,
então, não apenas como necessidade radical, tendente à transformação da institucionalidade vigente, mas também como direito
positivado em um amplo leque de normas internacionais e nacionais, que contempla diversas dimensões normativas atualmente
exigíveis. Propõe-se que, no centro desse direito, está um direito fundamental ao conteúdo do próprio trabalho, que determina
juridicamente as condições da atividade e da organização do trabalho. Recente estudo adotado pelo Alto Comissariado em Direi-
tos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o direito ao trabalho reforça essa compreensão.
Palavras-chave: Direitos humanos. Direitos fundamentais. Direito ao trabalho. Dignidade humana. Psicodinâmica do trabalho.
Abstract: The transformations imposed on the world of work by neoliberal drift have degraded not only the conditions of pur-
chase and sale of the labor force, but especially the existential conditions, that is, life through work, especially when corrupting
the sense and the work content. From a legal point of view, it is a deepening of the historical non-compliance with the right to
work. In view of this, the aim of this article is to face the ineffectiveness of the human and fundamental right to work from an
effort of normative reconstruction of its foundation, supported by a double theoretical pillar, in the theories of needs and theories
of recognition. With this, it seeks not only to recover the importance of the link between work and human dignity, but especially
to explain essential aspects of the centrality of work for the subjects, providing a constitutionally adequate understanding of its
normative content. The right to work is revealed, then, not only as a radical necessity, tending to the transformation of the current
institutionality, but also as a positivized right in a wide range of international and national standards, which includes several nor-
mative dimensions currently enforceable. It is proposed that, at the center of this right, there is a fundamental right to the content
of the own work, which legally determines the conditions of the activity and the organization of the work. A recent study adopted
by the United Nations High Commissioner for Human Rights on the right to work reinforces this understanding.
Keywords: Human rights. Fundamental rights. Right to work. Human dignity. Needs. Psychodynamics of work.
1. INTRODUÇÃO
Ousa-se sustentar que o direito ao trabalho é o mais
importante, embora talvez o menos efetivo dos direitos
fundamentais. Mesmo considerando-se as dificuldades
históricas de sua implementação, a recente deriva neo-
liberal tem em muito agravado tanto as condições de
compra e venda da força de trabalho quanto as condi-
O Direito Fundamental ao Conteúdo do Próprio Trabalho
Capítulo 3
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ções existenciais, de vida individual e coletiva, por meio
do trabalho, degradando o conteúdo e o sentido do
trabalho(2). A compreensão da centralidade do trabalho
convoca a cultura jurídica a enfrentar a crescente viola-
ção do direito ao trabalho decorrente dessa dupla pre-
carização. Por isso, vai-se privilegiar, neste espaço, uma
abordagem voltada às perspectivas de sua implemen-
tação atual na ordem constitucional brasileira vigente.
Ficam supostos, aqui, os aspectos relativos ao seu devir
histórico e ao aporte crítico que o direito ao trabalho,
como expressão de necessidades que demandam uma
profunda transformação da institucionalidade vigente,
traz frente a essa mesma ordem que o consagra.(3)
O foco na implementação não significa, porém, que
não seja necessário revolver os elementos de fundamen-
tação desse direito. Ao contrário da clássica afirmação de
Bobbio, para quem atualmente “o importante não é fun-
damentar os direitos do homem, mas protegê-los”(4), pos-
tula-se, na esteira do que foi sustentado por Joaquín Her-
rera Flores, que já é mais que tempo de parar para refletir
como, para proteger os direitos humanos, é indispensá-
vel repensar-se a sua fundamentação.(5) Pretende-se en-
frentar a inefetividade do direito humano e fundamental
ao trabalho a partir de um esforço de reconstrução nor-
mativa da sua fundamentação, feito em outro trabalho,
apoiado em um duplo pilar teórico, nas teorias das neces-
sidades e nas teorias do reconhecimento.(6)
Com esse esforço de reconstrução busca-se não so-
mente recuperar a importância do vínculo entre trabalho
e dignidade humana– a sua fundamentalidade–, como
especialmente explicitar aspectos essenciais da centrali-
dade do trabalho para os sujeitos, iluminando seu con-
teúdo normativo de forma constitucionalmente adequa-
da. O direito ao trabalho se desvela, então, não apenas
como necessidade radical, a demandar a transformação
integral da institucionalidade vigente, estabelecendo
uma disjuntiva do tipo nova institucionalidade ou nada.
(2) Para uma magistral e recente abordagem, nesse sentido: SUPIOT, Alain. Le travail n’est pas une marchandise: Contenu et sens du travail au XXIe
siècle. Paris: Éditions du Collège de France, 2019.
(3) A respeito do duplo caráter, normativo-positivo e crítico-transformador do direito ao trabalho, ver WANDELLI, Leonardo Vieira. O direito hu-
mano e fundamental ao trabalho: fundamentação e exigibilidade. São Paulo, LTr, 2012.
(4) BOBBIO, Norberto. A era dos direitos (trad. Carlos Nelson Coutinho). 10.ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p.37.
(5) HERRERA FLORES, Joaquín. Los derechos humanos como productos culturales: crítica del humanismo abstracto. Madrid, Catarata, 2005. p.36-38.
(6) WANDELLI, ob. cit.
(7) SASTRE IBARRECHE, Rafael. El derecho al trabajo. Madrid, Trotta, 1996. p.19.
(8) “Que el derecho al trabajo ha sido considerado tradicionalmente como el derecho social paradigmático entre todos los derechos sociales,
o el derecho social por antonomasia, no necesita ahora ya particulares justificaciones, pues es un dato adquirido la numerosísima literatura
al respecto.” MONEREO PÉREZ, José Luiz e MOLINA NAVARRETE, Cristóbal. El derecho al trabajo, la libertad de elección de prefesión u oficio:
principios institucionales del mercado de trabajo, In: MONEREO PÉREZ, MOLINA NAVARRETE e MORENO VIDA (Dir.), Comentario a la Constitu-
ción socio-económica de España. Granada: Comares, 2002. p.288.
(9) GIUBBONI, Stefano. Il primo dei diritti sociali. Riflessioni sul diritto al lavoro tra Constituzione italiana e ordinamento europeo. Disponível em:
<http://aei.pitt.edu/13686/1/giubboni_n46-2006int.pdf>.
Sem perda dessa radicalidade, abrem-se veredas para sua
implementação também como direito positivado em um
amplo leque de normas internacionais e nacionais, hic
et nunc, que contempla diversas dimensões normativas
atualmente exigíveis. Propõe-se que, no centro desse di-
reito, está um direito fundamental ao conteúdo do pró-
prio trabalho, que determina juridicamente as condições
da atividade e da organização do trabalho.
A seguir, no tópico 2, procura-se identificar o con-
texto normativo do direito ao trabalho, cuja importân-
cia é desmerecida por um escasso desenvolvimento
dogmático, colocando-se a questão das condições para
superar-se essa paralisia. No tópico 3, sintetizam-se al-
guns elementos da reconstrução da fundamentação do
direito ao trabalho que subsidiarão uma releitura con-
cretizadora cujos contornos gerais se esboçam nos tópi-
cos 4 e 5. No tópico 4, procura-se desenhar a figura com-
plexa de um direito multidimensional, um verdadeiro
megadireito, pela abrangência do leque que integra o
seu âmbito normativo. A dimensão central desse âmbi-
to, segundo se propõe, é a do direito fundamental ao
conteúdo do próprio trabalho, explicitada, no tópico 5.
2. O PROBLEMA: A CENTRALIDADE DO DIREITO
FUNDAMENTAL AO TRABALHO E OS DESAFIOS
PARA SEU DESVELAMENTO DOGMÁTICO
Reiteradamente proclamado nos textos constitu-
cionais e de normas internacionais relativas a direitos
humanos, o direito ao trabalho é considerado pela
doutrina internacional mais abalizada como “el arque-
tipo de los derechos sociales”(7) ou “o direito social por
antonomásia”(8) ou ainda “il primo dei diritti sociali”(9).
Sua centralidade para o discurso jurídico é afirmada
na literatura, não só por razões de ordem normativa,
mas também por razões de ordem histórica – como
primeira bandeira que levou ao constitucionalismo so-

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