Direitos humanos e o direito de ser diferente

AutorTercio Sampaio Ferraz Junior
Páginas97-114
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V
DIREITOS HUMANOS E O DIREITO
DE SER DIFERENTE
A análise filosófica faz ceder, por vezes, às tentações de
generalizações, no limite até inconsistentes, razão pela qual
me parece oportuno começar por uma situação concreta, rela-
tada por alguém que, na condição de filha, acompanhou por
mais de dez anos as circunstâncias vividas por seu pai, médico,
o qual se tornou hemiplégico aos 54 anos por força de um der-
rame cerebral (1983 a 1993).
Reproduzo o seu relato84.
Meu pai não era um doente. A sequela, a paralisia, a
cadeira de rodas, o problema da locomoção fizeram-no, em cada
dia dos dez anos que [sobre]viveu após o derrame, sentir-se um
inválido, um incapaz, um doente.
Para seguir com a profissão de médico, ele precisava de
uma infraestrutura de mais duas pessoas, um motorista e um
acompanhante. No hospital em que trabalhava, nem o banheiro
84. O relato é de Sonia Macedo de Mendonça Sampaio Ferraz.
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TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR
dos médicos era adaptado a um profissional paraplégico. Não
havia elevadores, nem rampa de acesso, nem subterrâneo para
embarque e desembarque, nos dias de chuva, de pessoas deficien-
tes. O pp. Hospital não era preparado para receber doentes com
paralisia tudo era na improvisação e na bondade de algumas
pessoas dispostas ajudar naquela vez, mas, nem sempre.
O tirar (e pôr) da cadeira de rodas do porta-malas do car-
ro exigia uma pessoa forte. O dia ensolarado convidava a passear
e levei meu pai, por ser um lugar plano na Avenida Paulista [São
Paulo]; eu não imaginava o que iríamos passar. A força para
empurrar a cadeira nas calçadas foi imensa. O sinal fechava e
abria tão rapidamente para nós que, não chegávamos a tempo
no outro meio fio. Puxar a cadeira até a calçada, novamente, ali
no asfalto era uma temeridade. Os carros ‘tiravam fino’ e os
motoristas achavam que pedíamos esmolas, pois o sol quente e a
dificuldade de mudar de calçada faziam com que meu pai ficas-
se de cabeça baixa. Pensei que ele estava cansado e voltamos
desse ‘passeio imaginado’ pela Avenida, que se resumiu a um
quarteirão só, até a primeira esquina.
Diante das dificuldades da rua, apesar dos dias bonitos, o
shopping se mostrava, então, mais fácil. Era o passeio ideal, com
vagas na garagem para deficientes, elevadores e piso deslizante.
Com certeza seria bom. Ao chegar, não havia vaga no estaciona-
mento para deficiente, muito embora não tenha visto ninguém
de cadeira de rodas no shopping.
As crianças paravam e olhavam. Depois de algum tempo,
perguntavam por que ele estava sentado ali, na cadeira de rodas;
olhavam para seus pés e perguntavam: você não anda? Papai
balançava a cabeça, negativamente, e as crianças perguntavam,
ainda, se ele nunca mais ia andar de novo e ele afirmava, lon-
gamente, com a cabeça. A curiosidade espontânea e a verdade
das crianças machucavam, deixando meu pai triste.
Aos poucos, ficaríamos mais em casa. Às vezes, uma volta
de carro, então, horas antes ele deixava de tomar água para não

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