Responsabilidade jurídica num mundo pantécnico

AutorTercio Sampaio Ferraz Junior
Páginas81-96
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IV
RESPONSABILIDADE JURÍDICA NUM
MUNDO PANTÉCNICO
1. Responsabilidade e liberdade: a herança da mo-
dernidade
A liberdade, como um dado típico da espontaneidade hu-
mana, opõe-se à natureza enquanto um mundo regido por leis
determinadas. Essa foi, em síntese, a herança da era moderna.
De um lado, como a ideia de bem se torna relativa à pers-
pectiva dos indivíduos, o subjetivismo da vontade se separa e
se contrapõe ao objetivismo da razão e da ciência: é a separação
entre consciência ética e verdade. De outro, a vinculação das
normas da moral e da religião restringe-se à esfera das decisões
privadas da consciência, separando-se da vinculação objetiva
das normas jurídicas: é a separação entre consciência moral e
direito. Segue daí uma terceira separação: a consciência ética
deixa de ser vista como um problema de scientia e passa a um
problema de conduta e valoração, donde a separação entre
liberdade e natureza como universos distintos.
O resultado dessa liberdade é, então, a abertura de
oportunidades para aproveitar-se o indivíduo do emprego
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TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR
inteligente da posse de bens no mercado sem limitações juri-
dicamente externas para conseguir poder sobre outros indi-
víduos. Esse poder assume a forma jurídica de uma autoriza-
ção pré-constituída, fundada na própria liberdade, formalmen-
te acessível a qualquer um, de fato à disposição daqueles que
detêm bens. Em consequência, temos uma organização política
caracterizada por uma descentralização do poder para efeitos
de produção de normas jurídicas que obrigam quem se com-
promete, mas que exigem uma estrutura global abstrata de
coordenação: o Estado.
Contudo, o crescimento dessa liberdade formal não impe-
de, mas fortalece a exigência de um poder central com força
coativa superior. Max Weber78 assinala que é com o monopólio
da produção jurídica pelo Estado no seu aspecto formal que
aparece a ideia de um direito concreto como uma garantia de
ação do indivíduo em face daquele monopólio. Essa garantia,
num primeiro momento, tem um contorno meramente negativo,
uma espécie de âmbito de não interferência, a chamada liber-
dade negativa ou de não impedimento, à qual, aos poucos, se
acresce o sentido de capacidade de produzir direitos por meio
de compromisso nas relações interindividuais. O não impedi-
mento assume, simultaneamente, a ideia de autonomia, enquan-
to função típica da expansão e da generalização do mercado.
A origem da palavra “responsabilidade”: re-spondere,
em que spondere significa aspergir. Aspergir (re) de volta. Ato
de jogar água, purificando uma relação. Como algo mágico,
capaz de restabelecer uma relação rompida.
Na antiguidade, num mundo do status, a responsabili-
dade por uma obrigação surgia, quase sempre, ex delicto. A
obrigação, nas relações estamentais, estava intimamente li-
gada a noções mágicas. Na nossa cultura, uma das formas
mais antigas de contrato que conhecemos é o empréstimo.
78. WEBER, Max. Op. cit.

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