Tempo e tempo jurídico em tempos do direito positivo

AutorTercio Sampaio Ferraz Junior
Páginas1-28
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I
TEMPO E TEMPO JURÍDICO EM TEMPOS
DO DIREITO POSITIVO10
1. O fenômeno da positivação
Um dado importante da experiência jurídica entre os sécu-
los XVI e XVIII é o fato de o direito ter-se tornado cada vez mais
direito escrito, o que ocorreu quer pelo rápido crescimento da
quantidade de leis emanadas do poder constituído, quer pela
redação oficial e decretação da maior parte das regras costumei-
ras. Além disso, o fenômeno da recepção do direito romano veio
propiciar o surgimento do tema da hierarquia de fontes (fontes
romanas, ordenações reais, costumes, direito canônico). Quanto
ao direito escrito, também nomeado direito comum ou direito
comum escrito, embora sem uma conceituação precisa, parece
que se referia ao chamado jus commune, o direito comum a todas
as cidades e vilas, em oposição ao jus proprium, peculiar a cada
uma delas, distinção já corrente na Itália a partir do século XII11.
10. Esse texto, em inglês, foi publicado no livro em homenagem a Werner
Krawietz (Positivität, Normativität und Institutionalität des Rechts. Berlin:
Duncker & Humblot, 2013).
11. GILISSEN, John. Les problèmes des lacunes du droit dans l’évolution
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TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR
O fato de o direito tornar-se escrito contribuiu para im-
portantes transformações na concepção de direito e de seu
conhecimento. A fixação do direito na forma escrita, ao mesmo
tempo em que aumenta a segurança e a precisão de seu en-
tendimento, aguça também a consciência dos limites. A pos-
sibilidade do confronto dos diversos conjuntos normativos
cresce e, com isso, aumenta a disponibilidade das fontes, na
qual está a essência do aparecimento das suas hierarquias
(fontes superiores e inferiores). Estas, no início, ainda afirmam
a relevância do costume, do direito não escrito sobre o escrito.
Pouco a pouco, no entanto, a situação inverte-se. Para tanto
contribuiu o aparecimento do Estado absolutista e o desen-
volvimento progressivo da concentração do poder de legislar.
Nesse período, a percepção da necessidade de regras inter-
pretativas cresce, o que pode ser observado por sua multipli-
cação com vistas à organização e articulação das diversas
fontes existentes. Essas transformações iriam culminar em
duas novas condicionantes, uma de natureza política, outra
de natureza técnico-jurídica. Quanto à primeira, assinale-se
a noção de soberania nacional e o princípio da separação dos
poderes; quanto à segunda, o caráter privilegiado que a lei
assume como fonte do direito e a concepção do direito como
sistema de normas postas.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
1789, em seu art. 3º, proclamava: “O princípio de toda sobe-
rania reside essencialmente na nação”. A soberania – a efeti-
vidade da força pela qual as determinações de autoridade são
efetivamente observadas e, aliás, tornadas de observação
incontornável mesmo por meio de coação, não estando sujei-
tas a determinações de outros centros normativos12 – residia,
du droit medieval et moderne. In: PERELMAN. Le problème des lacunes en
droit. Bruxelles, 1968, p. 225; KRAWIETZ, W. Gesetz (Nomos, Lex). In: J. Ritter
(Hrsg): Historisches Wörtebuch der Philosophie. Basel/Stuttgart, 1973, Bd. 3.
12. GIANNINI, M. S. Diritto amministrativo. Milano,1970, v. 1, p. 95; HART,
H. L. A. The concept of law. Oxford: Clarendon Press,1961; JOUVENEL, B. de

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