Moralidade e senso comum

AutorTercio Sampaio Ferraz Junior
Páginas131-159
131
VII
MORALIDADE E SENSO COMUM
1. Direito, Estado e poder
O direito, tal como o conhecemos hodiernamente, é
estritamente ligado à ideia de Estado. Trata-se, em uma lon-
ga tradição, do modelo westphaliano na palavra dos interna-
cionalistas, que permitiu a organização do direito a partir da
distinção nacional/internacional, do direito como produto do
exercício da soberania de um Estado em seu território, donde
a relação entre Estados enquanto entes soberanos. É essa
concepção, que conduziu a discussões recorrentes sobre a
juridicidade da própria ordem internacional, que está enrai-
zada num paradoxo.
Trata-se de conhecido paradoxo que aparece em um dos
mais controvertidos conceitos da teoria jurídica: o de soberania
e que Kelsen tentou, sem sucesso, contornar com a noção de
norma fundamental pressuposta.
Com efeito, o Estado, como vai dizer V. E. Orlando94,
afirma-se como pessoa: é nessa afirmação que se contém sua
94. ORLANDO, V. E. Principii di diritto ammnistrativo. Florença, 1919.
132
TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR
capacidade jurídica, é esse o momento que corresponde à
noção de soberania. No entanto, a concepção do Estado como
pessoa jurídica não pode deixar de significar concepção do
Estado como atualização perene das forças econômicas da
sociedade. Nesse sentido, aquela concepção implica neces-
sariamente a ideia de que o Estado subordina, via de regra,
as suas atividades aos preceitos do direito que ele declara:
não no sentido de que se circunscreve à missão de tutelar os
direitos individuais, mas no sentido de que não delimita a
priori a sua esfera de interferência, de que fixa a priori a
juridicidade de toda e qualquer interferência neste ou naque-
le outro setor da produção humana, com o intuito de realizar
o bem-estar geral.
Na palavra dos juristas, o Estado é, contudo, caracteriza-
do pelo alto grau de formalização de sua constituição. Seus
elementos estruturais, como a divisão dos poderes, o conceito
de lei, o princípio da legalidade da administração, a garantia
dos direitos fundamentais e a independência do Judiciário,
contêm em si mesmos as condições de seu modo de atuação:
reconhecidos como válidos, eles devem produzir um efeito
específico, adaptável aos condicionamentos sociais. Mas, inter-
namente, eles obedecem a uma estrutura peculiar, implícita na
noção de soberania: a estrutura hierárquica.
A alternativa do consenso permite ao jurista, nos termos
da teoria da soberania, ver o poder como um misto de força e
consentimento, donde o direito aparece como uma regulação do
exercício da força, fundado no consentimento (contrato). Aqui
as tendências variam no detalhe, mas a base é uma só: o poder
é, na sociedade, um só, é, na sociedade, uma qualidade imanen-
te aos indivíduos (força, capacidade) que é limitada à medida
que se exige o seu agrupamento (consenso).
Na verdade, a relação entre direito, poder e força, na teo-
ria da soberania, aponta para um paradoxo: a força está dentro
e está fora. Fora, como um elemento irredutível a qualquer

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT