A evolução do direito civil brasileiro codificado e a sociedade pósmoderna

AutorGabriel Machado Marinelli
Páginas23-76
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CAPÍTULO 1
A EVOLUÇÃO DO DIREITO CIVIL
BRASILEIRO CODIFICADO
E A SOCIEDADE PÓS-MODERNA
Para a compreensão dos estágios do desenvolvimento do Direito
Positivo desde os idos do liberalismo consagrado pelo Código Napoleônico
até a sociedade contemporânea, é importante assumir que o Direito, como
fenômeno cultural, está diretamente relacionado com a vida em sociedade.
O Direito só faz sentido se encarado da perspectiva do indivíduo em relação
ao outro. O Direito não existe, por assim dizer, onde não há sociedade.
A codificação oitocentista foi marcada pela forte tendência em se
conferir uma unidade harmônica ao Direito Civil, unidade essa que
compreendesse o estudo do Direito da perspectiva do sujeito e seu objeto
nas múltiplas relações privadas. É característica do movimento de
codificação, portanto, a clara necessidade de fazer do Código Civil um
sistema normativo para regular essas relações. Outra característica desse
momento histórico, decorrência direta do liberalismo da época, é a
consagração da igualdade, em termos formais, entre os sujeitos de direito.
No Brasil, o movimento de codificação da legislação civil tinha
como interesse primário a ordenação e classificação dos diversos institutos
do Direito Civil previstos em diversas legislações extravagantes, em busca
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GABRIEL MACHADO MARINELLI
de uma unidade sistêmica do Direito Privado. A primeira tentativa nesse
sentido foi de Teixeira de Freitas, em 1860, com o Esboço. Sob o ponto
de vista formal, havia a preocupação de se conformar os institutos do
Direito Civil dentro de um mesmo sistema jurídico. Essa mesma noção
de sistema foi, depois, aproveitada em parte pelo Código Civil brasileiro
de Clóvis Beviláqua.2
O Código Civil de 1916 tinha nítida inspiração oitocentista. Clóvis
Beviláqua o concebeu com a preocupação de incorporar a totalidade
normativa do Brasil, abrangendo preceitos que iam além do próprio
Direito Privado. Havia, também, a evidente intenção – resultado do
pensamento do Direito Civil no período pós-Revolução Francesa – de
se alcançar, com esse Código, a plenitude legislativa para solução de
controvérsias. Essa plenitude legislativa era tida como estandarte da
segurança jurídica almejada por aqueles que detinham o poder político
e econômico à época do advento do Código de 1916. Sob o ponto de
vista do conteúdo normativo, esse ordenamento jurídico evidenciava
duas preocupações centrais, também presentes no Código Napoleônico:
a igualdade jurídico-formal, isto é, igualdade perante a lei e a proteção à
livre iniciativa e à autonomia privada. Para Beviláqua, a solução a ambas
as preocupações estaria relacionada com a capacidade de previsão de
normas claras e precisas, em que o papel do intérprete seria basicamente
de subsunção da norma de direito ao caso concreto.3
O Código Civil de Beviláqua, contudo, ao contrário do Código
Napoleônico, não significava um movimento de ruptura com a estrutura
social de uma época. O Código Civil de 1916 reforçou algumas noções
liberais defendidas pelas classes conservadoras então detentoras do poder
político na sociedade brasileira. A presença dessa dualidade – liberalismo
e conservadorismo – era clara no conteúdo desse ordenamento.4
2 A respeito desse movimento de codificação no Brasil, vejam-se as observações de
MARTINS-COSTA, Judith H. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo
obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, pp. 237-259.
3 MARTINS-COSTA, Judith H. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo
obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, pp. 259-261.
4 Martins-Costa identifica esse conteúdo, ao asseverar que o Código Civil de 1916 era
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CAPÍTULO 1 - A EVOLUÇÃO DO DIREITO CIVIL BRASILEIRO...
O estilo do Código Civil de 1916 atendia aos postulados positivistas
da escola da exegese. Segurança jurídica era sinônimo de subsunção
mecânica, pelo aplicador do direito, da lei, abstrata, ao caso concreto. O
Poder Judiciário, como intérprete da lei, deveria atender à “vontade do
legislador” e priorizar a interpretação histórica e gramatical dos
dispositivos legais. Esses dispositivos, de modo intencional, quase não
possuíam vagueza semântica alguma. O Código Civil era, portanto,
“hermeticamente” fechado no tocante à forma de se regular as matérias
nele tratadas. O resultado dessa sistematização sem antinomias aparentes,
sem “aberturas” para aplicação da lei, foi a concepção de um diploma
legal sem cláusulas gerais, sem conceitos vagos, que restringia o papel
do jurista ao processo de subsunção.5
Essa relação estabelecida entre a forma e o conteúdo do movimento de
codificação e o papel do jurista é sintetizada por Judith H. Martins-Costa6:
A relação entre a forma e o conteúdo dos códigos conduziu a
um particular tipo de paradigma metodológico que desenhará,
por sua vez, o paradigma do jurista como um técnico e completará
o tipo de compreensão do direito como um sistema fechado. O
raciocínio jurídico e, por extensão, a interpretação das normas
jurídicas amarram-se fortemente ao contido no texto da lei, ponto
de referência exclusivo do jurista, o qual entende ter por missão
“liberal no que diz respeito às manifestações de autonomia individuais” e “conservador
no que concerne à questão social e às relações de família” (MARTINS-COSTA, Judith
H. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1999, p. 266).
5 Ramos define de modo bastante objetivo o que vem a ser o processo de subsunção:
“A subsunção, em si, constitui uma operação lógica inerente a todo e qualquer
procedimento de aplicação de normas jurídicas, com a nota de que pressupõe a fixação
inicial de um sentido provisório para a proposição prescritiva que serve como premissa
maior, já tendo em vista as aplicações concretas que a partir dela se anteveem, bem
como um manejar subsequente dos dados fáticos (premissa menor), tanto em termos
de comprovação de sua existência, quanto em termos de seu enquadramento preliminar
na classe de fatos descrita em abstrato no tipo legal” (RAMOS, Elival da Silva. Ativismo
judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 65/66).
6 A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1999, p. 268.

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