A fenomenologia da ação

AutorMarcella Furtado de Magalhães Gomes
Páginas60-128
3. A FENOMENOLOGIA DA AÇÃO
A exposição de um conteúdo, qualquer que seja ele, implica que
o sujeito forme uma interação entre o seu interior e o objeto de
estudo, de forma a ordená-lo dentro de si, a compreendê-lo e, então,
explicitá-lo em suas estruturas constitutivas e relações lógicas.
Em nossa análise da Ética aristotélica e, em especial, da Ética a
Nicômacos, deparamo-nos com o problema da formação da
consciência da virtude da ação no sujeito. Sobre ele traçamos a
hipótese de que a lei, veículo do justo universal, na medida em que é
modeladora do hábito virtuoso e expressão da excelência da razão
prática, é o elemento que possibilita, enquanto fundamento da praxis
individual, a consciência do agir ético.
Desta forma, a nossa compreensão da Ética aristotélica pela
leitura analítica da Ética a Nicômacos, conduziu-nos a organização e
metodologia de exposição à qual denominamos fenomenologia da
ação.
Etimologicamente, fenômeno deriva do grego fainomenoν, que
significa “o que aparece”, “aquilo que se manifesta, que se revela”.[1]
Neste sentido, a fenomenologia seria o logos, a explicação e, portanto,
análise e ordenação racional daquilo que se manifesta a partir deste
algo mesmo. No presente contexto, estabeleceremos que o fenômeno
é aquilo que se dá à percepção e, portanto, sempre será um caminho
para o conhecimento de algo, enquanto visto pela razão. O conhecer
pressupõe a consciência de si e do objeto, a percepção racional de
algo que é analisado, organizado, “remontado” racionalmente.
Portanto, utilizamos “fenomenologia” no sentido da percepção
racional de dado fenômeno – no caso em tela, da ação – que, não só o
vislumbra enquanto algo que se manifesta, mas também enquanto
captação racional de algo. Ou seja, que é, ao mesmo tempo,
pensamento de algo, juízo e sistematização do fenômeno percebido.[2]
Entendemos que Aristóteles apresenta-nos uma fenomenologia
da ação. Ou seja, apoiado na observação do fenômeno, o agir do
homem, tal como ele se manifesta, tal como ele aparece à percepção
racional, buscou explicitar por meio do logos, a processualidade deste
agir, o caminho lógico de seu manifestar-se. Enfim, a fenomenologia
da ação é o estudo que, apoiado na observação da ação, fornece sua
explicação racional.
Desta forma, a fenomenologia presta-se a dupla finalidade: é
método de conhecimento dos mecanismos da ação, bem como forma
de discurso racional. Aqui, apoiar-nos-emos nesta forma de
explicação. Nosso texto, ao remontar os passos da investigação
fenomenológica do agir será, portanto, organizado segundo a
explicitação dos elementos essenciais do agir.
Portanto, nossa exposição divide-se em três partes: primeiro,
abordamos o objeto da ação, aquilo a que visa o homem; segundo, seu
sujeito, a alma; finalmente, a relação entre sujeito e objeto que se na
processualidade do agir.
Neste capítulo, trataremos de por em relevo os traços
constitutivos da ação humana segundo Aristóteles, de tal sorte, que o
eidos, a forma do agir do homem salte aos olhos de modo
inconfundível na Ética a Nicômacos, possibilitando-nos a obtenção da
demonstração de nossa hipótese.[3]
3.1. O OBJETO DA AÇÃO: O FIM ÚLTIMO DO HOMEM
De acordo com Aristóteles, todas as nossas ações tendem a
realização de fins, que como tais configuram-se como bens, o bem da
ação.
O estagirita inicia a EN:
Every art and every inquiry, and similarly every action and choice, is thought to aim at
some good; and for this reason the good has rightly been declared to be that at which all
things aim. But a certain difference is found among ends; some are activities [praxis],
others are products apart from the activities that produce them [theoria e poiesis]. […]
Now, as there are many actions, arts, and sciences, their ends also are many; […] But
where such arts fall under a single capacity […] in all of these the ends of the master arts
are to be preferred to all the subordinate ends; for it is for the sake of the former that the
laer are pursued. (I, 1, 1094 a 1-16).
Prossegue Aristóteles (EN, I, 2, 1094 a 18-22):
If, then, there is some end of the things we do, which we desire for its own sake
(everything else being desired for the sake of this), and if we do not choose everything
for the sake of something else (for at that rate the process would go on to infinity, so that
our desire would be empty and vain), clearly this must be the good and the chief good.
Todos os fins humanos estão em função de um fim último, um
bem supremo, a eudaimonia (eudaimoniα), que consistirá na realização
pelo homem da obra (ergoν) que lhe é própria, ou seja, o perfeito
desenvolvimento e atuação da razão segundo a sua excelência (aretη).
O pensamento aristotélico, bem como o grego em geral, é
dominado pela visão teleológica. Todos os objetos definem-se pelo
seu fim e possuem uma faculdade (virtude aretε) que lhes permite
alcançá-lo.
Pensar, para os gregos, era a capacidade de entender algo em sua
inteireza e unidade, determinando-o, destacando-o da multiplicidade
informe. Para tanto, a razão busca identificar a função específica de
cada coisa, aquilo que ela unicamente deve realizar, aquilo que a
constitui como o que ela realmente é.
O fim da coisa, o seu bem, é ser ou atualizar aquilo a que a coisa
está destinada pela sua própria natureza a ser ou a realizar. E, quanto
melhor identifiquemos o fim ou o bem da coisa, por meio da obra
peculiar a ela pela sua natureza, melhor nós a entendemos.[4]
Novaes ilustra nossa argumentação (2004, p. 172-173):
Este modo de pensar pode ser facilmente ilustrado por qualquer objeto feito pelo
homem. Uma faca tem como fim o corte e sua arete é estar afiada. Sempre que nos
deparamos com objetos feitos pelo homem que nos são desconhecidos, portamo-nos
como o homem grego e, de imediato, perguntamo-nos “para que” ele serve, ou seja,
qual o seu fim. Enquanto o fim não nos é conhecido, o objeto permanece como algo
estranho, por mais que suas características físicas sejam simples e facilmente
descritíveis. Ou seja, os objetos produzidos definem-se pela sua finalidade. Uma mesa
não é algo composto por uma tampa apoiada sobre quatro pernas, pois pode possuir
inúmeras outras características. Uma mesa é qualquer coisa que sirva para, partícula que
nos indica o fim, apoiar ou dispor outros objetos, e a sua arete é o que a possibilita fazê-
lo, podendo ser o tamanho, a resistência ao peso ou a durabilidade. A mesa da sala de
jantar deixa de ser mesa e torna-se banco quando dela usamo-nos para sentarmo-nos, ou
cama, quando para deitarmo-nos, ou abrigo, quando usada para protegermo-nos num
desabamento. A toalha estendida no chão torna-se mesa num piquenique, o caixote
torna-se mesa num jogo de baralho, o saco de areia torna-se mesa numa trincheira de
guerra.
Esta forma de pensar refere-se a todas as esferas da existência, à
natureza, à arte e à ação ética, porque em todas elas está imanente a
inteligibilidade. Enfim, a razão atribui fins e virtudes a toda realidade
para que possa compreendê-la.[5]

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