Fundamentos do Estado Democrático de Direito

AutorRonaldo Brêtas de Carvalho Dias
Ocupação do AutorAdvogado
Páginas9-82
FUNDAMENTOS DO ESTADO
DEMOCRÁT ICO DE DIREITO
1. EXERCÍCIO DO PODER PELO ESTADO
Lembra José Alfredo de Oliveira Baracho, com esteio na doutrina1 de Carré
de Malberg,2 que a noção de Estado é tida como pressuposto a todo estudo
1 Neste livro, utilizamos o vocábulo doutrina com certa frequência. Portanto, é conve-
niente lembrar que doutrina, “do latim doctrina, de docere (ensinar, instruir, mostrar), na
terminologia jurídica, é tido, em sentido lato, como o conjunto de princípios expostos nos livros
de Direito, em que se rmam teorias ou se fazem interpretações sobre a ciência jurídica” (DE
PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário jurídico, p. 501). Assim, empregamos dita expressão
com o sentido de literatura jurídica especializada, como o fazem em poucas oportunida-
des os juristas alemães (ver MARTINS, Leonardo. Direito processual constitucional ale-
mão, p. 41 e 53). Algumas vezes, porém, a utilizamos em acepção estrita, pretendendo
indicar as opiniões, ideias e reexões jurídicas de um determinado autor ou jurista, sobre
determinados pontos ou questões discutidas na ciência do Direito. Em quaisquer des-
tes sentidos, ao utilizarmos a expressão, levamos em conta as considerações de Aroldo
Plinio Gonçalves: “As doutrinas particulares, quando possuem fundamentos comuns, podem
ser agregadas em escolas ou em correntes de um determinado campo do pensamento jurídico.
Podem ser, ainda, designadas genericamente como ‘doutrina’, mas a essa expressão se ajunta
um determinado qualicativo, que será a marca pela qual se reconhecem os fundamentos que,
sendo por elas compartilhados, sustentam diversas construções teóricas sobre um dado tema,
que se põe como objeto do conhecimento. As diferenças internas que apresentem não serão im-
portantes para impedir seu reconhecimento dentro de uma mesma tendência de pensamento”
(Técnica processual e teoria do processo, 2ª ed., p. 52).
2 Raymond Carré de Malberg (1861-1935). Por razões particulares, ligadas à espiritualidade
e à eternidade, colacionamos alguns dados biográcos do autor. Jurista francês. Professor
de Direito Público. Desenvolveu teorias críticas relacionadas ao Direito Constitucional
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de direito público, em geral, e do Direito Constitucional, em particular, ra-
zão pela qual se observa grande empenho dos publicistas em delineá-la. Ao
fazê-lo, constatam que as noções apresentadas pelos estudiosos da doutrina do
Estado evidenciam nos textos produzidos conexão entre as ideias de poder e
direito. Em face dessas considerações, Baracho pôde concluir que as palavras
chaves das instituições políticas são poder político e Estado. Daí ter armado
Lenio Luiz Streck, em brado conclusivo: “Anal, direito é poder. E os juristas
sabem muito bem disso!”. E é também essa realidade que levou Norberto
Bobbio a considerar e advertir: “o alfa e o ômega da teoria política é o proble-
ma do poder: como o poder é adquirido, como é conservado e perdido, como
é exercido, como é defendido e como é possível defender-se contra ele”.3
Aliás, sempre claro e coerente com seu pensamento cientíco, Baracho teve
o ensejo de observar que a conceituação de poder, embora frequentemente
surja sob diversicadas formas e características, apresenta-se não só como
tema central da teoria do Estado, mas também de extrema importância para
a própria teoria do direito, porque sua determinação e modo de se exercitá-lo
são passíveis de afetar toda a ordem jurídica.4
Em razão disso, é importante apreender algumas noções sobre o que seja
poder.5 Apressando-nos em transmiti-las, reproduzimos, a tanto, as seguintes
explanações feitas por Filomeno Moraes: “Poder é a capacidade ou a possibili-
dade de gerar e de produzir efeitos, de comandar a natureza, indivíduo ou grupo
francês, inuenciado em grande parte pelo pensamento jurídico alemão. Suas principais
obras, havidas como clássicos da literatura jurídica francesa, são: Contribution à la théorie
générale de l’État (1920) e La loi, expression de la volonté génerale (1931). Alguns leitores,
por certo, não entenderão o porquê, mas uns poucos colegas e alunos sabem a razão pela
qual, por pertinente a Carré de Malberg e à minha existência, é consignada a seguinte
citação bíblica: “e o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte à Deus, que o deu” (Ecle-
siastes, 12:7). Este texto bíblico, entre tantos outros, justica nossa crença na eternidade
e, nesta existência, consequente preocupação com a espiritualidade.
3 Cf. BARACHO. Regimes políticos, p. 119 e 137. STRECK. Constituição e processo,
p. 14. BOBBIO. A era dos direitos, p. 143.
4 Revista de Informação Legislativa v. 19, p. 33.
5 Anota Wendy Brown que a palavra poder deriva do latim potere, signicando potencia-
lidade e meios para ser capaz. Considera o autor que a origem etimológica da referida
palavra sugere a importância do poder como qualidade ou habilidade, sem ligação ou
pertinência com temas políticos e sociais, ao contrário do que ocorre na contemporanei-
dade (BROWN. e Oxford Handbook of Political eory, p. 65).
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de indivíduos. [...]. Muitas vezes o vocábulo poder é utilizado como equivalente
a poder político, signicando ter autoridade, por meio de prerrogativas legais e
políticas. Outras vezes arma-se que quem detém o poder possui inuência sobre
quem possui autoridade política. [...]. Também já se disse que o termo poder se
presta às mais divergentes interpretações e, se designa a capacidade de realizar
a própria vontade e de frustrar as vontades opostas, não logra exprimir por que
meios e para que ns deseja e utiliza essa capacidade, sendo, pois, inepto para
fornecer apropriada utilidade básica. Apesar dos problemas que são inerentes à
sua denição, pode-se dizer que o poder é a capacidade, atual e potencial, de
impor-se a vontade sobre os outros, inclusive, mas não necessariamente, contra a
sua resistência. Ademais, deve ser lembrado que o principal conceito que os estu-
dos jurídicos e os estudos políticos têm em comum talvez seja o conceito de poder.
[...]. Na vida social, é praticamente inexistente a inuência involuntária de um
indivíduo ou grupo sobre outro indivíduo ou grupo. Neste sentido, o estudo sobre
o poder abrange todas as esferas de vida em sociedade, no entanto, é na política
que o poder mostra de forma crucial o seu papel”. 6
Como salientou Karl Loewenstein, em texto de belíssima tessitura, intitu-
lado “anatomia do processo do poder político”, ali caracterizando o autor o que
qualicou de “enigmática tríade”, os três estí mulos f undamenta is que ma rcam
acentuadamente a vida do ser humano na sociedade, regendo-lhe as múltiplas
relações com seus semelhantes, são o amor, a fé e o poder, que se unem e en-
trelaçam por elos misteriosos. A armativa despontou justicada pelo mencio-
nado autor sob as considerações de que o poder da fé move montanhas, assim
como o amor é vencedor em todas as batalhas, sendo inerente ao ser humano
o amor e a fé ao poder, lembrando ser a história testemunha de como o amor
e a fé contribuíram para a felicidade do ser humano e de como o poder, muitas
vezes, contribuiu para a sua miséria.7
Assim, ainda segundo Loewenstein, quaisquer que sejam as relações huma-
nas, impelidas por essa tríade de motivações, o poder tem grande importância
no contexto sócio-político, podendo ser considerado como a infraestrutura
das instituições sociais e políticas. Sem dúvida, considerada na sua inteireza,
6 Dicionário de Filosoa do Direito, p. 640-642. Especicamente sobre poder político, ver im-
portantes observações de Michael Walzer, em seu livro Esferas da justiça: uma defesa do pluralismo
e da igualdade, p. 385-419.
7 Teoría de la Constitución, p. 23.
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