Hermenêutica constitucional

AutorEduardo dos Santos
Páginas139-167
CAPÍTULO VI
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL
1. NOÇÕES DE HERMENÊUTICA JURÍDICA: INTERPRETAÇÃO, APLICAÇÃO,
INTEGRAÇÃO E CONSTRUÇÃO
A hermenêutica jurídica pode ser def‌inida como o sistema próprio do direito que estuda
a interpretação, a aplicação, a integração e a construção jurídicas.1
A interpretação consiste na atividade hermenêutica que se preocupa com o nexo
existente entre o texto, o direito e os fatos, tratando-se de um pressuposto lógico do or-
denamento jurídico, pois sempre é necessário interpretar. Nas palavras de Maria Helena
Diniz, é a “atividade jurídica que busca identif‌icar o sentido e o alcance das normas, tendo
em vista uma f‌inalidade prática, criando condições para uma decisão possível, ou melhor,
condições de aplicabilidade da norma com um mínimo de perturbação social, empregando,
para tanto, as suas várias técnicas”.2
Já a aplicação consiste na atividade hermenêutica que se dedica à decidibilidade, a
concretude do direito, isto é, cuida da implementação da norma geral resultante da inter-
pretação do enunciado normativo, gerando uma norma individual concreta para o caso,
como uma decisão judicial, por exemplo. Nas palavras de Maria Helena Diniz, é o “ato pelo
qual o poder competente, após a interpretação, aplica a lei para criar a norma individual”.3
Por sua vez, a integração consiste na atividade hermenêutica que se dedica a colmatação
(preenchimento) das lacunas do sistema jurídico. No direito brasileiro há quatro formas de
integração: analogia, costumes, princípios gerais de direito, previstas no art. 4º, da LINDB,
e equidade, fruto de construções doutrinárias e jurisprudenciais.
Analogia: embora não haja consenso quanto a sua def‌inição, mais comumente a
analogia é conceituada como o método hermenêutico pelo qual uma determinada
norma jurídica estabelecida para determinado “caso”, ou melhor para determinado
modelo comportamental típico (facti species), é aplicada a um “caso semelhante”
para o qual não há norma, isto é, é aplicada a outro modelo comportamental típico
para o qual não há norma jurídica (prévia) estabelecida, em razão da semelhança
existente entre ambos os supostos (ou suportes) fáticos.4
Costumes (ou consuetudo): são as práticas reiteradas de uma certa sociedade, aceitas
como legítimas e geradoras de expectativas jurídicas robustas (numa perspectiva
1. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
2. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 449 e ss.
3. Ibidem, p. 441 e ss.
4. MONTALVÃO, Bernardo. Manual de Filosof‌ia e Teoria do Direito. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2020.
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DIREITO CONSTITUCIONAL SISTEMATIZADO • EDUARDO DOS SANTOS
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de segurança jurídica), enquanto normas não escritas aprovadas pelo povo5 que,
por isso, são incorporadas ao direito dessa sociedade (direito consuetudinário),
preenchendo as lacunas do ordenamento legal, mas não do ordenamento jurídico,
pois a este pertencem também as normas consuetudinárias. No direito brasileiro,
os costumes são habitualmente classif‌icados em três espécies: i) costume praeter
legem, que se caracteriza por ir além do texto legal, empregado pela hermenêutica
no campo integrativo para preencher àquilo que não foi exteriorizado pela lei, sen-
do, unanimemente, reconhecido como norma integradora do direito; ii) costume
secundum legem, que se caracteriza por ser um costume em consonância com a Lei,
o que corrobora para a maior efetividade da legislação, mas não o caracteriza como
meio de integração; iii) costume contra legem, que se caracteriza pela contrariedade
à Lei, isto é, por ser um costume cujo conteúdo é antagônico, adverso, oposto ao
sentido de uma determinada norma legal, não sendo, por isso, aceito como forma
de integração pela doutrina pátria. Entretanto, é mister registramos que no direito
romano o costume contra legem podia ser admitido como forma de ab-rogar as leis
pelo desuso (desuetudo), podendo, assim, preencher a lacuna deixada pela lei por
ele ab-rogada,6 compreensão com a qual concordamos.7
Princípios gerais do direito: são as normas basilares e fundamentais sob as quais se
estruturam o próprio “Direito”, partindo-se da concepção de que o direito deve ser
justo, correto, escorreito, límpido e universal (ou universalizável). Normalmente
nossos juristas limitam-se a identif‌icá-los como os princípios gerais do direito romano:
honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere, ou seja, viver honestamente,
não lesar outrem e dar a cada um o que é seu.8 Obviamente esses preceitos de direito
(para usarmos aqui uma expressão dos próprios romanos) são sim princípios gerais
(ou universais) do direito. Contudo, no direito contemporâneo, esses princípios vão
além desses três brocardos, englobando outros tão fundamentais quanto eles. Citando
aqui apenas aquele que nos parece ser o princípio universal do direito e, portanto,
o mais básico princípio geral do direito, conforme demonstrara Kant, “é justa toda
ação segundo a qual ou segundo cuja máxima a liberdade do arbítrio de cada um pode
coexistir com a liberdade de qualquer um segundo uma lei universal”, de modo que
a lei universal do direito é: “age exteriormente de tal maneira que o livre uso de teu
arbítrio possa coexistir com a liberdade de qualquer um segundo uma lei universal”.9
Para além disso, à luz do constitucionalismo contemporâneo, do humanismo ético
e do princípio democrático, pode-se apontar, ainda, como princípios gerais do di-
reito, pelo menos: a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a igualdade material,
a solidariedade (ou fraternidade) e a busca da felicidade.
5. Inveterata consuetudo pro lege non immerito custoditur, et hoc est ius quod dicitur moribus constitutum. Nam cum ipsae leges
nulla alia ex causa nos teneant, quam quod iudicio populi receptae sunt, mérito et ea, quae sine ullo scripto populus probavit,
tenebunt omnes. JUSTINIANO I, Imperador do Oriente. Digesto de Justiniano. 4. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 57.
6. Quare rectissime etiam illud receptum est, ut leges non solum suffragio legis latoris, sed etiam tacito consensus omnium per
desuetudinem abrogentur. JUSTINIANO I, Imperador do Oriente. Digesto de Justiniano. 4. ed. São Paulo: RT, 2009, p.
57-58.
7. Parece-nos que, no campo do direito penal, o princípio da adequação social, tal qual idealizado por Hans Welzel, atua de
forma semelhante ao costume contra legem, capaz de, legitimamente, revogar condutas outrora tipif‌icadas pelo legislador.
WELZEL, Hans. Derecho penal aleman: parte general. 4. ed. Chile: Jurídica de Chile, 1997.
8. JUSTINIANO I, Imperador do Oriente. Digesto de Justiniano. 4. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 24.
9. KANT, Immanuel. Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 35.
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