Normas constitucionais

AutorEduardo dos Santos
Páginas107-137
CAPÍTULO V
NORMAS CONSTITUCIONAIS
1. A CONSTITUIÇÃO COMO SISTEMA ABERTO DE REGRAS E PRINCÍPIOS
Como vimos, a Constituição consiste na norma jurídica fundamental e superior que
constitui e organiza o Estado e seus poderes e estabelece direitos fundamentais limitando
esses poderes. Essa norma, obviamente, precisa acompanhar o processo civilizatório de
cada sociedade, pois uma Constituição distante da realidade da sociedade que rege, é uma
Constituição fadada ao fracasso.
A história das civilizações nos mostra que as sociedades se modif‌icam constantemente,
as vezes mais, as vezes menos, mas se modif‌icam. Contudo, se a cada situação nova que a vida
apresenta e se a cada relação nova em que o homem se envolve for se alterar o texto consti-
tucional, colocar-se-ia a própria Constituição em uma situação de instabilidade que poderia
comprometer a efetividade ou até mesmo a vigência da Carta Constitucional (a depender da
intensidade que se altera o seu texto) rompendo com a ordem (jurídica e política) instalada.1
Assim, faz-se necessário abrir a Constituição às novas situações, sem alterar-se cons-
tantemente o seu texto. Nesse sentido, fala-se de uma abertura constitucional a princípios
e valores que possibilitem à ordem constitucional vigente reconhecer e resolver as novas
situações, tanto através do reconhecimento de novos direitos (direitos atípicos) como por
novas leituras de direitos antigos (típicos). Deste modo, a Constituição deve ser compreen-
dida como um sistema aberto e f‌lexível de regras e princípios.2
Partindo das considerações de Claus-Wilhelm Canaris3 sobre a abertura sistêmica, pode-
-se dizer que o sistema constitucional é aberto em face da incompletude do conhecimento jurídico
e da modif‌icabilidade dos valores fundamentais da ordem jurídica. No âmbito do atual sistema
constitucional brasileiro essa abertura se dá, sobretudo, pelos princípios constitucionais.
Superando a clássica visão positivista, na qual a norma jurídica era compreendida
somente como regra jurídica, tal qual nas teorias de Hans Kelsen4 e Herbert Hart,5 à luz do
constitucionalismo contemporâneo, a norma jurídica passa a compreender duas espécies:
as regras e os princípios. Essa nova concepção da norma jurídica, promove a abertura do
sistema jurídico, sobretudo pelos princípios, por serem eles normas jurídicas abertas de alta
densidade axiológica.6 No âmbito do sistema constitucional esse fenômeno (a abertura pelos
princípios) é mais intenso, vez que as modernas Constituições são estruturadas essencial-
1. BRITTO, Carlos Ayres. A Constituição e os limites de sua reforma. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais.
Belo Horizonte, n. 1, p. 225-246, jan/jun, 2003.
2. CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A Constituição aberta e os direitos fundamentais. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
3. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. 4 ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2008, especialmente p. 103-126.
4. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
5. HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. 3 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
6. Nesse sentido, dentre outros: CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra:
Almedina, 2003, p. 1159 e ss.
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DIREITO CONSTITUCIONAL SISTEMATIZADO • EDUARDO DOS SANTOS
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mente sobre princípios e, em especial, suas normas de direitos fundamentais são positivadas
como princípios.
Por f‌im, deve-se dizer que as normas constitucionais (regras e princípios), em especial
os princípios fundamentais da Constituição, compreendidas sob uma perspectiva sistêmica,
devem guiar a abertura da Constituição, desde a cognição/recepção de novos direitos (ou
de novas leituras de direitos já existentes) até a interpretação/aplicação e construção desses
direitos. Isto é, o sistema constitucional é visto como fonte e, ao mesmo tempo como método
de interpretação: interpretação sistemática ou sistêmica.7
2. A CONCEPÇÃO DA NORMA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN: CONCEITO,
ESPÉCIES, APLICAÇÃO E CONFLITOS
Ronald Dworkin, um dos maiores expoentes do direito estadunidense do último século,
propõe uma revisão (óbvia, segundo ele) da norma jurídica, que deveria ser compreendida
não somente como regra (tal qual se percebe na clássica lição do positivismo jurídico), mas
como um gênero que comportaria duas espécies: regras e princípios.8
Segundo constata Dworkin, os princípios jurídicos, concebidos pelos positivistas como
meras recomendações, axiomas, metas ou programas de política, devem, na verdade, ser
compreendidos como verdadeiras normas jurídicas, possuindo todos os atributos inerentes
à normatividade, especialmente, a imperatividade, pois, assim como as regras, são normas
de direito, e não meras recomendações.9
Dworkin explica que os princípios jurídicos, de modo genérico, são tanto os princípios
propriamente ditos, como as políticas. Sendo política “aquele tipo de padrão que estabelece
um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político
ou social da comunidade”, enquanto princípio consiste no “padrão que deve ser observado
porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade”.10
Passando à distinção entre regras e princípios, Dworkin demonstra que as referidas
espécies normativas podem ser diferenciadas quanto ao modo de aplicação, pois, de um lado,
as regras jurídicas são aplicadas ao modo tudo-ou-nada, ou seja, se uma regra é válida e o
caso concreto corresponde à sua previsão, então a regra deve ser aplicada (subsunção), a não
ser que exista alguma exceção (prevista positivamente no ordenamento) que não permita
a sua aplicação naquele tipo de situação, o que acarreta uma especif‌icação maior da regra,
tornando-a mais completa à medida que possui mais especif‌icações.11 De outro lado, os
princípios jurídicos atuam auxiliando e fundamentando a decisão do magistrado de modo
7. Como bem salienta Juarez Freitas, “interpretar a norma é interpretar o sistema inteiro, pois qualquer exegese comete,
direta ou obliquamente, uma aplicação da totalidade do Direito, para além de sua dimensão textual”. FREITAS, Juarez.
Interpretação sistemática do direito. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 76.
8. DOS SANTOS, Eduardo R. O pós-positivismo jurídico e a normatividade dos princípios. Belo Horizonte: D’plácido,
2014.
9. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
10. Ibidem, p. 36.
11. Nesse sentido, Ronald Dworkin af‌irma que “a diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica.
Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias especí-
f‌icas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira tudo-ou-nada.
Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou
não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão [...] A regra pode ter exceções, mas se tiver, será impreciso e
incompleto simplesmente enunciar a regra, sem enunciar as exceções. Pelo menos em teoria, todas as exceções podem
ser arroladas e quanto mais o forem, mais completo será o enunciado da regra”. Ibidem, p. 39-40.
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