Hermenêutica jurídica e teoria dos valores

AutorAurora Tomazini de Carvalho
Páginas277-329
239
Capítulo VII
HERMENÊUTICA JURÍDICA E
TEORIA DOS VALORES
SUMÁRIO: 1. Teorias sobre a interpretação; 2. Compreensão e
interpretação; 3. Interpretação e tradução; 4. Interpretação dos
textos jurídicos; 5. Sobre o plano de conteúdo do direito; 6. Per-
curso da construção do sentido dos textos jurídicos; 6.1. S1 – o
sistema dos enunciados prescritivos – plano de expressão do di-
reito positivo; 6.2. S2 – o sistema dos conteúdos significativos dos
enunciados prescritivos; 6.3. S3 – o sistema das significações nor-
mativas – proposições deonticamente estruturadas; 6.4. S4 – pla-
no das significações normativas sistematicamente organizadas;
6.5. Integração entre os subdomínios S1, S2, S3 e S4; 7. Interpre-
tação autêntica; 8. Sobre os métodos de análise do direito; 9. Te-
oria dos valores; 9.1. Sobre os valores; 9.2. Os valores e o direito.
1. TEORIAS SOBRE A INTERPRETAÇÃO
Hermenêutica Jurídica é a Ciência que tem por objeto
o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para
construção e justificação do sentido dos textos do direito
positivo. É, nos dizeres de CARLOS MAXIMILIANO, “a teo-
ria da arte de interpretar”211.
211. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 1.
240
AURORA TOMAZINI DE CARVALHO
Durante muitos anos a tradição hermenêutica associou o
termo “interpretação” à ideia de revelação do conteúdo con-
tido no texto. Interpretar era mostrar o verdadeiro sentido de
uma expressão, extrair da frase ou sentença tudo que ela con-
tivesse212. Tal ideia justificava-se na tradição filosófica ante-
rior ao giro-linguístico, de que as coisas tinham um significa-
do ontológico e que as palavras denotavam tal significado, de
modo que, existia um conteúdo próprio a cada termo. Assim,
o trabalho do intérprete resumia-se em encontrar a significa-
ção preexistente no texto, extraindo o sentido que ali existia.
Sob esta perspectiva, o sentido era algo dado, contido no
texto, mas escondido na sua implicitude, sendo a função do
intérprete exteriorizá-lo.
Com a mudança de paradigma da filosofia do conheci-
mento, as palavras deixam de ter um significado ontológico
(atrelado às coisas), vez que é a própria linguagem que cria o
objeto. Sob esta nova perspectiva, o conteúdo dos textos deixa
de ser algo dado, preexistente, para ser algo construído e vin-
culado aos referenciais do intérprete.
O sentido não está mais escondido no texto (aqui conside-
rado em acepção estrita), como algo a ser descoberto ou extra-
ído pelo intérprete. Não há um sentido próprio (verdadeiro)
para cada palavra, expressão ou frase. Ele é construído por
meio de um ato de valoração do intérprete. Sobre este pon-
to, PAULO DE BARROS CARVALHO esclarece: “Segundo os
padrões da moderna Ciência da Interpretação, o sujeito do
conhecimento não extrai ou descobre o sentido que se achava
oculto no texto. Ele o constrói em função de sua ideologia e,
principalmente, dentro dos limites de seu mundo, vale dizer,
do seu universo de linguagem”213.
212. O supracitado autor – CARLOS MAXIMILIANO, expressa bem esta tendência,
segundo ele: “interpretar é explicar, esclarecer; dar significado de vocábulo, atitude
ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o
sentido verdadeiro de uma expressão; extrair, de frase, sentença ou norma, tudo o
que na mesma se contém” (Idem, p. 9).
213. Direito tributário, linguagem e método, p. 192.
241
CURSO DE TEORIA GERAL DO DIREITO
Nestes termos, e seguindo as premissas adotadas nes-
te trabalho, interpretar não é extrair da frase ou sentença
tudo que ela contém, mesmo porque ela nada contém. A
significação não está atrelada ao signo (suporte físico) como
algo inerente a sua natureza, ela é atribuída pelo intérprete
e condicionada as suas tradições culturais. Uma prova disso
está na divergência de sentidos interpretados do mesmo texto.
Se cada palavra (enquanto marca de tinta presente num papel,
ou onda sonora) contivesse uma significação própria e o traba-
lho do intérprete se restringisse em encontrar tal significação,
todos os sentidos seriam unívocos, ou pelo menos tenderiam
à unicidade. Isto não ocorre justamente porque o sentido não
está no texto, está no intérprete e, desta forma condiciona-se
aos seus referenciais linguísticos.
O intérprete constrói o conteúdo textual. O texto (em
sentido estrito) é significativo, mas não contém, em si mesmo,
significações (seu conteúdo). Ele serve como estímulos para
a produção do sentido. As significações são construídas na
mente daquele que interpreta o suporte físico, por este mo-
tivo, requerem, indispensavelmente, a presença do homem.
Assim sendo, podemos dizer que não existe texto sem conte-
údo, mas também não existe conteúdo sem o ser humano. O
conteúdo está no homem, apenas é atribuído ao texto.
Transportando estas considerações para a especificidade
dos textos jurídicos, vale a crítica de PAULO DE BARROS
CARVALHO sobre a afirmação segundo a qual: “dos textos do
direito positivo extraímos normas jurídicas”214. Tal assertiva
pressupõe ser possível retirar, de entidades meramente físi-
cas, conteúdos significativos, da mesma forma que se extrai
água de um pano molhado, ou mel de uma colmeia, como se
as significações estivessem impregnadas no suporte físico e
todo o esforço do intérprete se voltasse para arrancá-las de
dentro dos enunciados.
214. Fundamentos jurídicos da incidência tributária, p. 17.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT