Laicidade: o aspecto da neutralidade

AutorMarco Aurélio Lagreca Casamasso
Páginas141-180
141
CAPÍTULO 4
LAICIDADE: O ASPECTO DA NEUTRALIDADE
O novo status das religiões
Não foi sem razão que a Igreja Católica lutou com tanta
veemência contra a ideia de um Estado neutro em matéria religiosa.
Defendida e disseminada na França e em outros países, no final do
século XIX, este desígnio não incomodava simplesmente por gerar
um risco de iminente diminuição do poderio da Igreja. O grave ri sco
de enfraquecimento, era, na realidade, consequência de uma ameaça
ainda maior, que prenunciava assolar os alicerces da religião cristã e
os próprios fundamentos da fé. Além do imediato abalo
institucional, a neutralidade em matéria religiosa representava a
possibilidade de uma radical mudança no papel da religião na
estruturação da sociedade política, com a verdade cris perdendo o
seu milenar status de pedra angular do edifício estatal e da própria
sociedade.
Derivada do latim neuter, o termo neutro significa “nem um
nem outro”.324 A partir dessa raiz etimológica, pode-se afirmar que
o Estado neutro em matéria religiosa não poderá favorecer ou
desfavorecer nem uma nem outra religião. A neutralidade religiosa
do Estado pressupõe, portanto, uma igualdade de importância entre
as religiões. Em termos pragmáticos, o tornar-se igual acarretará três
consequências principais. A primeira, certamente a mais visível,
refere-se diretamente à relação entre o Estado e as confissões
religiosas, e acarreta a perda de quaisquer benefícios ou malefícios
que alguma dessas confissões possa vir a sofrer em virtude de algum
favor ou desfavor a ela dispensado pelo poder estatal.
Outro efeito reflete-se, sobretudo, na configuração da nova
ordem entre as confissões religiosas: com a neutralidade estatal, não
324 PETIT ROBE RT. Neutre, in Petit Robert, p. 1268.
142
deve haver nenhum tipo de hierarquia325 entre as religiões, na
medida em que todas se tornam iguais perante a lei estatal. De modo
que, para o Estado, não haverá mais religiões verdadeiras e falsas,
ou religiões mais ou menos importantes.
Apesar de menos perceptível que a primeira, a terceira
consequência é a que decididamente mais contribuiu, e tem
concorrido, para a consolidação da laicidade ao longo da história. A
sua implicação atinge em cheio o projeto holista das religiões – no
sentido de lançarem o seu poder sobre todos ou quase todos os
aspectos da existência humana , pois o Estado não mais deverá
reconhecer a existência de uma verdade religiosa. Os dogmas e os
valores teológicos de uma religião já não podem servir de estrutura
à sociedade política. Com a laicidade, as verdades religiosas que a
princípio são refratárias umas às outras, isto é, desiguais, tornam-se,
paradoxalmente, iguais, no sentido de nenhuma delas em particular,
nem todas em conjunto, poderem fundar e estruturar a lis.
É importante que se esclareça que a neutralidade do Estado
laico não equivale à sua imparcialidade perante as religiões. Para
efeito de distinção, Maurice Barbier sugere o exemplo de uma
eventual ajuda financeira a ser oferecida por um Estado às confissões
religiosas.326 No caso do Estado que precisasse agir somente com
imparcialidade, a ajuda deveria ser oferecida de forma igualitária, a
fim de não caracterizar um tratamento desigual, isto é, parcial, em
favor de uma confissão em detrimento de outras. Quanto ao Estado
laico, tendo de agir com neutralidade, ele sequer deveria considerar
a hipótese daquela ajuda do mesmo modo que uma eventual
hipótese de malefício , nem mesmo com o compromisso de realizá-
la em termos igualitários.
Para as confissões religiosas que funcionaram ou atuam
como braço espiritual do Estado, os efeitos da neutralidade religiosa
são dramáticos. Não há somente perda material, como são as
reduções de poder, influência e privilégios, nos campos político,
jurídico e mesmo econômico. Há, igualmente, outro tipo de perda,
325 Cf. PENA-RUIZm Henri. Qu’est-ce que c’est la laïcité. Op. cit., p. 23.
326 BARBIER, Maurice. La laïcité. Op. cit., p. 87.
143
que consiste em um nivelamento e um rebaixamento do status das
próprias crenças religiosas. O nivelamento ocorre porque mesmo
quando associada a uma crença religiosa tradicional, uma confissão
passa a ser apenas mais uma, entre várias outras confissões
religiosas. E há rebaixamento de status porque, em termos de
direitos, as crenças promovidas pelas confissões religiosas tendem a
ser equiparadas não somente a outros tipos de crenças espirituais,
como são as diversas formas de misticismo, mas também ao ateísmo
e ao agnosticismo aqui tomados como alternativas às opções de
escolha representadas pelas crenças religiosas.327
Como observa Henri Pena-Ruiz, “ateu ou crente, monoteísta
ou politeísta, livre pensador ou místico: nenhuma hierarquia pode
ser fundada sobre a escolha efetuada entre estas opções”.328 Para o
autor, a ausência de hierarquia faz com que as confissões religiosas
tradicionais percam o monopólio das “necessidades espirituais”.329
Ou seja, com a laicidade, as grandes questões espirituais tornam-se,
também, objeto de legítima referência doutrinária para confissões
religiosas minoritárias e para outras práticas espirituais. Em face a
tais efeitos, não é de estranhar que o já mencionado Syllabus de
1864, do Papa Pio XI, tenha optado por uma resposta tão radical à
moderna onda de laicização. Esse tipo de repulsa, na verdade,
mesmo que atenuada, ainda permanece em pleno século XXI. Como
afirmou o então cardeal Joseph Ratzinger, hoje Papa Emérito Bento
XVI, “as religiões são consideradas todas equivalentes. Mas isso é
falso”.330
327 Henri Perna-Ruiz equipara as crenças religiosas, o ateísmo e o agnosticismo
como os “três grandes tipos de opção espiritual”. PENA-RUIZ, Henri. La laïcité.
Op. cit., 238. De nossa parte, julgamos mais apropriado considerar o ateísmo e o
agnosticismo como alternativas às opções espirituais. Uma opção espiritual é uma
opção relativa ao espírito entendido como parte imaterial do ser humano ou a
ele pertinente. Ora, tanto o ateísmo quanto o agnosticismo podem ser tomados
como uma espécie de reação à espiritualidade.
328 PENA-RUIZ, Henri. Qu’est-ce que c’est la laïcité. Op. cit., p. 23.
329 Idem, p. 80.
330 Apud DEUS e os homens na visão de Bento XVI, in Veja, edição 1902, São
Paulo: Abril Cultural, 2005, p. 74.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT