Laicidade: o aspecto da separação

AutorMarco Aurélio Lagreca Casamasso
Páginas97-139
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CAPÍTULO 3
LAICIDADE: O ASPECTO DA SEPARAÇÃO
A especificidade francesa e a palavra
A laicidade apresenta-se, a princípio, como objeto de estudo
vinculado à história das relações entre o Estado francês e a Igreja,
que se estende do final do século XVIII até os nossos dias.
Concebida pelos franceses como artifício político-jurídico para
executar e garantir a separação entre o Estado e a Igreja, bem como
para disciplinar o exercício da liberdade religiosa no âmbito da
sociedade política, a laicidade surge limitada a uma experiência
tipicamente nacional. Entre os teóricos da França que se dedicam ao
tema, a consciência de que a laicidade é portadora de uma
nacionalidade específica a francesa , é utilizada frequentemente
como ponto de partida para reflexões e análises em torno dos
desafios a serem enfrentados pelo do Estado laico atual. Jaqueline
Costa-Lascoux, por exemplo, logo no início de uma de suas obras,
adverte o leitor de que a “laicidade é uma componente da ‘exceção
francesa’”.211
Ao discorrer sobre o tema, Jean Morange não deixa de
observar, à guisa de introdução, que a laicidade, na França, está
“muito fortemente ancorada nas mentalidades”, contrastando com o
restante da Europa, onde aparece “marginalizada”.212 Na mesma
linha de exemplificação213, pode-se mencionar o Relatório da
211 COSTA-LASCOUX, Jacqueline. Les trois âges de la laïcité. Paris: Hachete,
1996, p. 7.
212 MORANGE, Jean. Laïcité. In: ALLAND, Denis; RIALS, Stéphane (dirs.),
Dictionnaire de la culture juridique, Paris: Lamy-PUF, 2003, p. 914.
213 Entre aqueles que se referem à laicidade como “exceção francesa”, destacam-
se também Françoise Champion, Guy Coq e Jean Baubérot . Para a primeira, a
laicidade é uma “maneira de ver francesa, que não vale por si mesma”.
CHAMPION, Françoise. Entre laïcisation et sécularisation: des rapports Église-
État dans l’Europe communautaire, in: Le débat, Paris: Gallimard, 1993, p. 47. Já
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Comissão de reflexão sobre a aplicação do princípio da laicidade
na República, mais conhecido na França como Rapport Stasi,
apresentado ao governo francês em dezembro de 2003. Ao examinar
a problemática da laicidade no contexto europeu, a Comissão chega
a indagar se “não é ela, a laicidade, uma particularidade
hexagonal”?214
Não obstante tais afirmações soarem como um regozijo
quase nacionalista, o fato é que a política e a religião encontraram
na França Estado constitucionalmente definido como República
laica215um palco privilegiado para a demonstração das suas
relações de força. Na realidade, o que a história deste país parece
demonstrar, é que não se pode confiar em uma solução permanente
para a questão político-religiosa. Mais de dois séculos após o
Iluminismo e a Revolução Francesa, os franceses são capazes de
promover, sem artificialismos, um amplo debate nacional sobre a
laicidade, de forma intensa, quando não apaixonante. O famoso caso
do véu, ocorrido em 1989, e, mais recentemente, no ano de 2003, a
questão dos símbolos religiosos nas escolas públicas,216
o segundo e o terceiro reconhecem uma “laicidade à francesa” ao lado de uma
“laicidade”. COQ, Guy. Laïcité et république:. Le lien nécessaire. Paris: Le Félin,
2003, p. 6. BAUBEROT, Jean. La laïcité, une chance pour le XXIe siècle. In:
BAUBEROT, Jean (dir). La laïcité à l’épreuve. Religions et libertés dans le monde,
Paris: Universalis, 2004, p. 12.
214 COMISSION DE REFLEXION SUR L’APPLICATION DU PRINCIPE DE
LAÏCITE DANS LE REPUBLIQUE. Rapport au President de la République,
Paris: La Documentation Française, 2003, p. 29.
<https://www.ladocumentationfrancaise.fr/var/storage/rapports-
publics/034000725.pdf> Acesso em 03.09.2018. O relatório é denominado
Rapport Stasi devido ao nome do seu relator, Bernard Stasi. A palavra
“Héxagone”, em francês, além de significar uma forma geométrica, designa
também a França; “hexagonal”, por sua vez, é natural deste país, cuja forma
cartográfica se assemelharia a um hexágono.
215 Conforme o artigo 1º da Constituição Francesa de 1958 “A França é uma
República indivisível, laica, democrática e social”.
216 O famoso “affaire du voile” refere-se ao episódio ocorrido em 1989 em que
alunas muçulmanas foram impedidas de ingressar na sala de aula portanto o véu
islâmico e a questão sobre os símbolos religiosos à polêmica sobre a ostentação
dos símbolos religiosos nas escolas públicas.
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simplesmente conseguiram reabrir, em pleno século XXI, uma
acalorada discussão sobre o papel e os limites do Estado laico.
Assim, ao vincularmos o surgimento e a afirmação da
laicidade a uma realidade nacional específica, somos levados a
indagar se o modelo do Estado laico, que emerge da história político-
constitucional francesa, aplica-se a outros Estados, e, especialmente,
ao Brasil. Em termos mais amplos, o questionamento refere-se à
possibilidade de se atribuir- à laicidade uma abrangência
supranacional, que ultrapasse as fronteiras de um Estado isolado.
Sem desconhecer a ascendência nacional do genuíno Estado
laico, e, tampouco, sem ignorar o fato de que a sua elaboração
conceitual ser, em grande medida, produto de uma longa tradição
intelectual desenvolvida na França, consideramos não apenas
pertinente, mas indispensável recorrer-se à contribuição francesa
sobre a laicidade, como instrumental teórico-conceitual para uma
análise e reflexão dos aspectos mais fundamentais das relações entre
o Estado e as religiões, independentemente de vinculações
nacionais, na esfera de predominância do cristianismo. Desta forma,
identificamos na laicidade uma vocação existencial que se projeta
para além de uma história particular,217 alcançando uma dimensão
potencialmente universal. Aliás, conforme observa René Rémond,
deve-se lembrar que, além da França, diversos outros Estados de
tradição católica também conheceram, ainda no século XIX, debates
sobre a laicidade. 218 No Brasil, por exemplo, a “questão religiosa”,
ocorrida entre os anos de 1873 e 1875, já trazia os ingredientes que
fomentariam a ruptura entre o Estado e a Igreja na República que
seria proclamada em1889.
Embora o objetivo principal nesta etapa seja estabelecer, em
nível teórico e, até certo ponto, abstrato, as características e os
fundamentos do Estado laico, a menção de algumas referências
217Cf. COQ, Guy. Laïcité et république: Le lien nécessaire. Op. cit., p. 6.
218 O autor cita a Bélgica, Itália, Espanha e Portugal. REMOND, René. Préface. In:
BEDOUELLE, Guy; COSTA, Jean-Paul. Les laïcités à la française, Paris: PUF,
1998, p. 3.

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